A arvorezinha e a negação da vida

A arvorezinha e a negação da vida

Crônica sobre a maldade

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      Havia decidido não falar mais deste assunto. Reviso minha decisão. Seguirei o roteiro que se instalou na minha cabeça como uma tatuagem. Há pessoas que lutam para embelezar o cotidiano contra as evidências da crueza diária. Claudia é uma delas. Com ajuda da nossa amiga Tieta, criou um belo jardim nos blocos que impedem um retorno em nossa rua. Vez ou outra, precisa gritar da janela para que não levem as flores. Passa o dia vigilante. No canteiro que divide a avenida, junto ao jardinzinho, plantou uma árvore, que começou a crescer orgulhosa, exibindo seus primeiros verdes. Não é que foi vilmente atacada! Amanheceu depenada. Sobrou um fiozinho na terra. Parecia morta. Resistiu, floresceu de novo, brotou do nada, vicejou, viveu.

      Aí veio o segundo ataque. Tudo arrancado outra vez. Os brotinhos de verde amanheceram de novo no chão. Quem terá feito isso? Por que uma arvorezinha incomoda? Alguém poderá dizer que estou dando muito importância a algo tão pequeno e até me rotular de piegas. Sou mesmo. Diante dessa maldade repetida acabei por ter um instante de desânimo:

– Deixa isso pra lá. Na rua nunca vai dar certo – disse.

– De jeito nenhum – rebateu a Cláudia.

      Ela é insistente. Caro leitor, peço ajuda: o que leva alguém a destruir uma arvorezinha em crescimento? O que faz uma pessoa investir contra uma flor? Observo que quando alguém tenta arrancar as flores do canteiro é, mesmo que isso pareça torto, por amor à beleza. Quer levar para casa aquelas joias da rua. Quando, porém, alguém depreda a arvorezinha é pura maldade. Fico pensando no sentimento que toma conta do predador quando se encontra na solidão do anonimato matando a beleza. Que sensações experimentará imaginando a decepção dos outros? Uma cidade, mesmo grande, não deixa de ser a casa de todos os seus moradores. A vida de bairro reproduz em parte a convivência dos lugarejos: vizinhos, amigos, cumprimentos, doces que se trocam, como vai a saúde dos conhecidos, flores, arvorezinhas, brincadeiras.

      Nas flores do jardim da Cláudia e nos brotos persistentes da arvorezinha eu andava vendo a força da vida e um esforço para humanizar a chamada “selva de pedra” que tanto nos horroriza e coisifica. Muita gente faz coisas belas pela cidade. Na destruição da plantinha, no entanto, não posso deixar de ver uma atitude de negação. O que se quer negar? Talvez a força da beleza como metáfora do entendimento entre diferentes, do compartilhamento pacífico de um espaço e do “preço das coisas sem preço”. Uma flor no meio da rua não tem preço. Uma arvorezinha explodindo a cada dia em verdes triunfantes e resistentes não tem preço. Só valor. É a poética da existência.

      Num mundo de aparências, de distinções pomposas, de monetizações abusivas e de hierarquias sociais artificiais, o belo das coisas simples tem o valor da própria vida: uma dádiva efêmera e frágil. Confesso que eu já teria desistido. O mal pode ser tão rasteiro que atordoa. Ainda bem que a Cláudia não se abala. Se duvidar, instala uma câmera. Aliás, tem uma bem na frente, no outro lado da rua. Triste. Vejo tudo isso como uma marca deste nosso tempo de tentas negações.


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