A guerra dos castelos

A guerra dos castelos

As milícias surgiram no Rio de Janeiro com a falácia de fazer justiça e proteger o povo fluminense. Se tornaram bandidos

Oscar Bessi

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Eu era guri, lá pela metade dos anos 1980, quando li “A festa no castelo”, de Moacyr Scliar. Torci, durante muitas páginas, pelo velho sapateiro Nicolas e seus sonhos de igualdade entre os homens. Eu me iludi tanto quanto Fernando, personagem que era um estudante encantado pelo que dizia o veterano militante. Ele criou a fábrica de sapatos do povo, onde os empregados mandariam em tudo e não haveria injustiça, mas distribuição equitativa de lucros na produção etc. Foi só o negócio crescer que o velho Nicolas começou a gostar das regalias, dos privilégios, da grana fácil e do poder. Esqueceu ou deixou de lado tudo o que pregava. E disse que era assim mesmo, não tinha como ser diferente. Pensei: mas como pode, alguém se deixar levar tão fácil logo por tudo aquilo que combatia? Não, isto é coisa da ficção. Mas a vida tratou de me apresentar uns quantos Nicolas. Dê poder a alguém e o conhecerás de verdade, já diz o ditado.

As primeiras milícias surgiram no Rio de Janeiro com um discurso de que eram “cidadãos de bem” e policiais se unindo para libertar o povo carioca do mando e desmando de traficantes violentos, que o estado parecia incompetente, ou desinteressado, para enfrentar. Uma delas até se intitulava “Liga da Justiça”. Décadas depois, não possuem mais diferença alguma em relação aos traficantes que um dia diziam combater. Lidam com o comércio de drogas, assassinatos, crimes diversos, oprimem comunidades e enfrentam a Polícia a tiros. O violento confronto na madrugada de quinta-feira, em plena Avenida Brasil, mostra bem o que são. O belo trabalho de inteligência policial preparou um cerco que interceptou, com viaturas da PRF, o bonde miliciano. Que reagiu violentamente. Por sorte, feridos apenas no lado dos criminosos. Quinze presos no total. Diversas armas apreendidas – uma pistola, inclusive, com brasão da Polícia de Miami, que deve estar fula com isto. E uma ação, certamente violenta, interrompida antes de acontecer.

Os oprimidos cubanos fizeram uma revolução, tomaram o poder e se tornaram opressores, perseguindo artistas, escritores e homossexuais, por exemplo. Os milicianos queriam fazer justiça e se tornaram criminosos cruéis e sem limites. Scliar, com seu Nicolas, mostrou o quão humano e comum é se render aos luxos de uma festa em qualquer castelo e, embriago de prazer e poder, jogar às favas todo escrúpulo ou idealismo. E fazer exatamente aquilo que se disse surgir para combater. A guerra no Rio de Janeiro não vai acabar justamente por isto. Fortunas envolvidas. É muita festa de arromba nesses castelos em guerra. Muita gente deslumbrada, ou já acostumada, e alugando a alma para qualquer diabo. O crime patrocina gente demais, o dinheiro sujo de sangue dá as ordens e compra benevolências. Volta e meia policiais cumprem o seu dever e terminam com a festa, aqui ou ali. Mas a gente sabe muito bem o que geralmente resulta das maiores e melhores ações policiais que acontece neste país. Punição rigorosa é que não é.


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