Apontamentos sobre a literatura da Tchéquia

Apontamentos sobre a literatura da Tchéquia

Médico, escritor e membro da Academia Rio-Grandense de Letras, Nilson Luiz May, escreve sobre alguns escritores tchecos que valem a pena ser lido e estudados, além de Kafka

Correio do Povo

Escritor, dramaturgo, jornalista e crítico tcheco Karel Tchapék

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Quando se fala em Literatura da República Tcheca (é bom que se aprenda a denominar seu território como Tchéquia), é constante e imperioso que, mesmo para os menos iniciados na matéria, surja de imediato o nome de Franz Kafka (1883-1924) - e é preciso que se enuncie isto já, com todas as razões e méritos demonstrados e reconhecidos. Os estudiosos e críticos literários são quase consensuais na opinião de que a narrativa ficcional subsequente está alicerçada na tríade Kafka, Marcel Proust (1871-1922) e James Joyce (1882-1941). No caso de K. (como gostava de referir seus personagens), isso só aconteceu graças ao intelectual Max Brod (1884-1968), seu mais próximo amigo, confidente e primeiro biógrafo, que post mortem do autor, a partir da metade do século XX, publicou suas narrativas curtas e seus romances inacabados. Kafka era judeu, de classe média alta (seu pai um próspero comerciante), morou toda sua vida em Praga (a mãezinha com garras) e escreveu sua obra na língua alemã. O centenário de sua morte, um mês antes de completar 41 anos, será reverenciado em diversas exposições no decorrer de 2024.

Nessa questão de Kafka ter escrito em alemão, volta-me à lembrança o que se poderia correlacionar aos tempos do Jesus histórico, circulando entre Galileia e Judeia sob o domínio do Império Romano e falando aramaico, língua das classes populacionais de nível mais baixo e pobre, enquanto as camadas de maior poder político ou financeiro comunicavam-se em hebraico, grego ou latim. Pode não ser exatamente uma comparação fidedigna, entre o alemão superior e a língua tcheca popular. Mas nesse sentido, surge a questão: naquele período existiriam outros escritores de alcance internacional que pudessem representar a literatura tcheca e que escrevessem na língua do povo?

A resposta é sim. Ora, escrevendo em tcheco havia escritores desde a era medieval, ainda que pouco conhecidos ou traduzidos fora daquela fronteira linguística, tampouco em nosso ambiente cultural hodierno, pelo menos até recentemente. Só para embasar, poderíamos dizer que a Literatura Tcheca, desde seus primórdios (digamos a partir do século XIV), tenha revelado textos de matiz mais ocidental, como aliás as demais literaturas eslavas. As obras literárias passam a narrativas de “idade moderna” apenas ao final do século XIX. (1) Dentre os autores que merecem citação a partir desse período, caberia nominar Josef Machar (1864–1942), com seus versos de inspiração social; Antonio Sova (1864-1928), em alguns momentos de alta poesia; Jiri Wolker (1900-1924), precursor da poesia proletária, e Jaroslav Hasek (1883-1923), pelo livro “O soldado Schweck” (ou Svejk), inspirado na Primeira Guerra Mundial e que alcançou notoriedade universal. A propósito desse, é imprescindível citar Otto Maria Carpeaux (2), quando nos descreve que “este anti-herói é forçado a servir no exército austríaco contra seus irmãos eslavos e ilude os oficiais, fingindo-se de idiota. E como idiota pode dizer verdades subversivas”. Epopeia picaresca e uma das grandes obras satíricas da literatura mundial. Construí este preâmbulo, contudo, para chegar a Karel Tchápek, ou Capek (1890-1938), nascido numa aldeia da Boêmia, filho de médico, último de três irmãos, todos de certa forma com dons artísticos. Doutor em Filosofia com formação em estética e dramaturgia nas Universidades de Carolina (Praga), Humboldt (Berlim) e Sorbonne (Paris). Patriota, nacionalista e líder político, participou da criação do Estado da Tchecos lováquia. Faleceu em Praga, no dia de Natal de 1938, com apenas 48 anos.

Quanto à produção literária de Tchápek, contemporâneo de Kafka, destacaríamos algumas obras traduzidas para o português. Da vida dos insetos, única citada por Otto Maria Carpeaux, em seu 8° volume da História da Literatura Ocidental referindo-o como uma narrativa satírica de “guerra entre exércitos de formigas, cujos generais usam linguagem patriótica dos humanos”. Em “Histórias apócrifas”, lançado aqui em 1994, pela Editora 34, com tradução direta do original em língua tcheca, torna-se mais evidente seu estilo predominante, que oscila entre o pastiche e a sátira, textos repletos de ironia em seu anacronismo moderno. Nelson Ascher (3), no prólogo do livro, pergunta-nos se há razão para surpreender-se pelo fato do escritor nacional representativo da Tchéquia ser sobretudo um humorista. As histórias, adjetivadas como apócrifas, foram escritas no decorrer de longos anos para mais tarde formarem a coletânea. Nesses contos, Tchápek usa com frequência personagens reais, oriundos da mitologia, da Grécia, do Império Romano, e até da Bíblia (tais como Alexandre da Macedônia, Arquimedes, Aquiles, Diocleciano, Átila, Pilates, Jesus), para constituir base histórica, repleta de versões ficcionais (imaginárias), em tom irônico ou satírico de como “poderiam” ter ocorrido os episódios em que tais personagens acham-se envolvidos. A Guerra das Salamandras, também disponível em edição traduzida para o português, é uma fábula que refere a descoberta de salamandras de alta inteligência, escravizadas por humanos, numa crítica ao capitalismo.

É provável que dentre toda sua curta produção literária, a que mais tenha distinguido o autor seja o drama (de sucesso internacional) “R.U.R.” (Robôs Universais de Rossum), que conta a história de um cientista que construiu humanoides, os quais denomina Robôs, para realizarem com obediência o trabalho físico dos homens, e que posteriormente revoltam-se contra seu criador (uma certa similitude com o Frankenstein de Mary Shelley). Daí as frequentes menções de ter sido Tchápek o criador da palavra Robô (com o sentido de “trabalho escravo”), a seguir comumente utilizada nos livros de ficção científica. O drama teatral R.U.R. foi lançado no Brasil com o título de “A fábula dos Robôs” e a seguir adaptado para o gênero narrativa.

1 Einsiedel, Wolfgang. “História das literaturas universais” (Die Literaturem der Welt). Lisboa, 1974.

2 Carpeaux, Otto Maria. “História da Literatura Ocidental” (vol. 8). Alhambra, 1984.

3 Ascher, Nelson. “Histórias apócrifas”. Apresentação. Editora 34, 1994.


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DESDE 1º DE OUTUBRO 1895