Cem anos de humor: Millôr Day

Cem anos de humor: Millôr Day

Breno Serafini *

Millôr Fernandes completaria 100 anos no próximo dia 16 de agosto

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“O homem é o único animal que ri. E é rindo que ele mostra o animal que é”.

Millôr Fernandes

“E se a vida for do outro lado?” O questionamento, do genial Millôr Fernandes, marca a irreverência que sempre pautou a obra do agnóstico humorista, figura ímpar no panorama das artes brasileiro, que, neste 16 de agosto de 2023, estaria fazendo 100 anos, fosse vivo. 

Ele, artista de muitas mídias que, por diferentes caminhos, sempre buscou a verdade, por mais que fugidia e inalcançável, a perseguiu num processo gestado no limiar entre grafia e ilustração. Além disso, também em outras esferas deixou sua marca, como na tradução, na pintura, no texto dramático, na televisão, etc. 

Sua produção impressiona pela diversidade, pelo poder de síntese e pela qualidade de intervenção na realidade brasileira, numa reflexão bem-humorada sobre todas as formas de poder, do micro ao macro. Humanista desde sempre, provocativo e instigante, Ipanema ao fundo, mirou o homem em sua dimensão universal. 

E a ausência desse pensador gera um vácuo que muito dificilmente será ocupado por alguém, salvo alguma surpresa. Ficamos mais pobres em inteligência, o Brasil ficou menor — e a ausência do menino que adotou “a paz da descrença” como filosofia de vida se faz sentir, principalmente porque ninguém como ele conseguiu, em todo o seu percurso, ligar questionamento e coerência. 
Autodenominado “jornalista sem fins lucrativos”, Millôr não se furtou a questionar nenhum matiz ideológico: desde as crônicas de resistência à ditadura, com seus colegas de O Pasquim, ao alvorecer da abertura política, e mesmo nos tempos da democracia formal que viveu, sempre se pautou pela isenção de “recusar-se aos 10% a que teria direito”. 

Ciente de que “a mala nada na lama”, tanto faz se lida da direita para a esquerda ou da esquerda para a direita, incomodou a muitos com sua verve sarcástica, denunciando desde o autoritarismo reinante (“quem se curva aos opressores mostra a bunda aos oprimidos”) até os esquerdistas com suas bolsas-ditadura (“desconfio de todo idealista que lucra com seu ideal”).

Millôr partiu para o outro lado um pouco antes das jornadas de junho de 2013, que, por diferentes caminhos, levaram ao Brasil de hoje. O processo, que passou pela operação Lava Jato, pelo impeachment de Dilma, pela ascensão de uma direita radical, pela eleição de Jair Bolsonaro, pelo fortalecimento de movimentos antidemocráticos que culminaram na invasão e depredação das sedes dos Três Poderes em janeiro deste ano, com o retorno de Lula à presidência, revelou um país cindido.

Segundo a sua filosofia de que “imprensa é oposição, o resto é armazém de secos & molhados”, nenhum presidente ou governo, militar ou civil, passou incólume à sua crítica ferina. De Getúlio a Dilma, todos experimentaram o seu crivo, que, em tempos de ditadura ou reconstrução da democracia, ficaram marcados pela crítica aos militares (“quando os militares falam que não vão se meter em política, já estão se metendo”), a Collor (“Continua nos dando demonstrações de seu vigor físico. E nós cada vez mais preocupados com seu estado psíquico”), a Fernando Henrique Cardoso (“FhC superlativo de PhD”), a José Sarney (“Sir Ney”) e a Lula (“A ignorância lhe subiu à cabeça”), dentre outros. 

Concorde-se com ele, ou não, Bolsonaro e esses tempos de negacionismo científico e climático seriam um prato cheio para seu sarcasmo. Alguém duvida? E mesmo numa época em que as redes sociais por vezes expõem o pior do humano, certamente daria uma boiada por se manter na luta defendendo o seu espaço de criação. Nesse sentido, poucos intelectuais que ocuparam a grande mídia foram tão ciosos da sua integridade, o que, é claro, lhe custou um preço alto e, na maioria das vezes, o emprego.

E o criador do jornalismo alternativo no país (O Pif-Paf), dentre tantos feitos, é reconhecido pela invenção do frescobol (“o importante é nem competir”), nominado ainda o primeiro ghost writer — ao substituir e manter o estilo das colunas de seus colegas do Pasquim no período em que estiveram presos (“nós, os humoristas, temos bastante importância pra ser presos e nenhuma pra ser soltos”) — e considerado o pioneiro na utilização da tecnologia do computador como ferramenta de criação artística (“Com o advento do computador, hoje são os jovens que vivem se queixando de falta de memória”). 

Não bastasse isso, uma de suas mais importantes obras, muito pouco divulgada numa nação sem memória, está no acervo do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o tríptico Enterro de Mondrian, que, segundo o diretor à época da aquisição: “Dia chegará em que os apreciadores virão a este museu para ver o ‘Enterro’, como atualmente vão ao Prado de Madri ver Goya”. 
E se deste lado ficamos nós, se existir do outro lado mesmo, talvez o Guru do Meyer nos assista afirmar que, órfãos do autor, temos a sua obra, a atestar em pílulas de sabedoria a enormidade de sua construção. E com a Bíblia do Caos em mãos, juramos manter viva não sua fama, mas sua notoriedade. Para isso decretamos 16 de agosto, hoje o centenário de seu nascimento, para todo o sempre, o Millôr Day. 

 

* Escritor. Doutor em Letras pela Ufrgs. 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895