“Miragens: onde dormem os sonhos

“Miragens: onde dormem os sonhos

Poeta, professor e ensaísta Mario Furtado Fontanive analisa as obras e a mostra “Miragens”, de Lilian Maus, que está exposta na Galeria Ocre até dia 30 de abril

Correio do Povo

Obra "N140" da série "Área de Cultivo", que integra a mostra "Miragens", de Lilian Maus, em cartaz na Galeria Ocre

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O título da exposição individual “Miragens”, realizada pela artista e professora do Instituto de Artes da Ufrgs, Lilian Maus (1983, Salvador/BA), na Galeria Ocre, em Porto Alegre, faz menção a um delírio. Uma miragem é um espelho feito de ar, que surge por meio da diferença de calor entre duas camadas aéreas. Mas não é sólida como um espelho, é efêmera. É como se o deserto trouxesse embutida, junto com a falta, a imagem daquilo que falta.

Esta exposição da Lilian apresenta, sobretudo, paisagens. As paisagens estão ligadas às formas de atenção de cada um. São trocas entre o que queremos ver e o que existe. Considero que tem havido um gradativo empobrecimento das atenções, um empobrecimento nos mecanismos de encontros e de trocas com os outros. A exposição da Lilian quer nos alertar sobre estas perdas, mostrando muitas formas de ver o mundo dentro e fora do espaço da galeria: pintura sobre tela e papel, vídeo projetado na fachada, instalação com tecido no jardim, performance e texto-imagem.

Um dos lugares por onde a artista tem andado e visto paisagens é a região de Osório, onde cresceu e desenvolveu sua tese de doutorado. Penso que a Lilian está criando com o seu fazer uma espécie de infância amadurecida. Só uma artista é capaz disso. Falo infância porque, para desenvolver uma percepção mais livre, temos de buscar um olhar quase impossível, uma atenção para as coisas em si mesmas. Assim como Barthes conceituava a escuta psicanalítica como uma tarefa muito difícil, ou seja, como uma escuta que, ao invés de procurar, “deixa surgir”. Penso que, do mesmo modo, a Lilian está desenvolvendo uma atenção que pode estar relacionada à forma de agir e de perceber da infância, pois não refuta o que quer que encontre – seja um inseto, um bugio ou um conto –, tudo é passível de atenção e de descoberta. E digo amadurecida porque, simultaneamente, não abdica da reflexão.

A artista abandona-se a uma receptividade viva e, por isso, transita por tantos meios. Ela mergulha em procedimentos muito antigos, ligados à tradição pictórica, utilizando líquidos, panos, tintas e colocando o corpo e o gesto no centro do trabalho, até chegar à produção cinematográfica movida a práticas colaborativas, na companhia de Biel Gomes e da comunidade de Osório, com personagens como Pedro e Emanuel Ávila, Paulinho Biru e Tadeu Marcelino, não-atores que atuam no filme Ygápéba. Desse modo, podemos dizer que o trabalho transborda o espaço da galeria de arte e ganha força política na região de Osório.

Na tese de doutorado, a artista produziu um “inventário de fauna e flora” baseando-se em procedimentos que os biólogos usavam para seus registros. Em seu trabalho, Lilian relatou: “É nesse espaço onde a linguagem encontra a terra, a partir do trabalho do olhar e das mãos, que surgem os desenhos e poemas em prosa do Inventário de Fauna e Flora. Eles foram feitos a partir de incursões no Morro da Borússia, num movimento de abertura ao encontro com esse ambiente.”

Penso que esta é uma das chaves para o acesso ao trabalho atual. A artista faz uma catalogação que não informa os critérios que ordenam o que é registrado. A linguagem tem por centro um fundo insondável e estável sobre o qual erigimos nossas representações. A casa da infância, por exemplo, inscreve em nós as diferentes funções do habitar, carregamos conosco para todas as outras casas a imagem deste primeiro lar. Entretanto, muito do que a artista faz tem relação com outro tipo de encontro: com a percepção de estruturas difusas, de misturas, com as metamorfoses da natureza viva. A natureza é o que derruba as nossas certezas, o que nos apresenta relações inesperadas. Aqui é bom lembrar o que escreveu Paul Valéry: “Aqueles que enxergam as coisas com exatidão demais não as enxergam exatamente, portanto.” Nas pinturas atuais da Lilian, é possível pensar um aprofundamento desse movimento de catalogação do inefável. As pinturas certamente não têm a infinidade de variações do real, mas apresentam uma abertura inclassificável no olhar do artista ao se dispor à troca com o real. O rigor científico, que tentava encontrar ordens na natureza, cedeu lugar às sobreposições improváveis, objetos difusos e fronteiras invadidas.

A pintura chamada “N140”, da série “Área de Cultivo”, nos mostra uma paisagem. Podemos deduzir que é uma paisagem pela estrutura da composição: há, por exemplo, uma área que vai da base até uma linha horizontal próxima à metade da pintura dentro da qual os objetos que ali estão são refletidos. Seria como um lago povoado de abstrações. Um lago onde estão colocadas imagens emolduradas. Poderia ser descrito como se a ordem vegetal, com suas raízes e folhas, servisse de moldura para memórias. O corpo se habitua aos lugares, às pequenas distâncias, aos mínimos sons e cheiros, incorporando isso aos seus movimentos. Se o lugar é rico e contém diferenças, estas são como ninhos para as nossas memórias. Imagino que a artista queira traduzir essa vivência do lugar na pintura. Mas nada disso é definitivo, são como escrevi no início deste texto: visões efêmeras, miragens, frutos do desejo.

Há outra pintura denominada “Fenda” que podemos classificar tanto como abstrata quanto como realista, a artista joga com a distração e a atenção simultâneas do olhar. Durante o processo da pintura, um gesto inicial lança um alagado de tinta sobre o tecido, a água desencadeia um sonho com a forma de um cânion e de uma cachoeira, marcas mais arbitrárias são estabelecidas com pincel em punho, mas param antes do fim para permitir que se mantenha o jogo com a dualidade entre o figurativo e o abstrato. A artista viu as marcas que ela mesma fez e colheu as formas sugeridas do espelho úmido da tela e a desdobrou, quando a tinta estava ainda úmida, em mais duas pinturas menores: “Miragens do Interior” e “Miragens do Exterior”, resultados absolutamente distintos de impressões da matriz “Fenda”. Leonardo Da Vinci também costumava ver figuras em manchas, assim como toda criança já as coletou das nuvens. Os sentidos recolhem o que surge e buscam torná-lo representação, buscam estabelecer relações consistentes com outros padrões. Este é um processo que envolve todo o indivíduo, desde o intelecto até as mais sutis lembranças corporais.

Numa tarde qualquer, um observador talvez não tenha nada para fazer, ou, quem sabe, esteja cansado e se entregue à contemplação desta pintura. Por estar desobrigado de maiores compromissos, o olhar pode se fixar e descobrir imagens novas, talvez um cavalo alado, quem sabe o mapa de um rio desconhecido ou uma cachoeira. A abstração e a liberdade permitem que o olhar se invente. Ele não precisa buscar as respostas no catálogo instantâneo para olhares necessários, pode se deixar levar pelo desejo mesmo de ver. Este jogo livre de trocas inesperadas pode se dar nessa pintura.

Não considero que a Lilian busque simulacros ou queira passar algum conceito. Ela encontra beleza, mas não faz disso seu principal objetivo. Ela traduz encontros e, por diversos meios, em função da peculiaridade de cada um, apresenta visões múltiplas. Recusando-se a separar a verdade do encontro do conhecimento, contamina-o e relativiza qualquer afirmação definitiva. É neste movimento que o trabalho da Lilian floresce.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895