Liberdade em troca das raízes

Liberdade em troca das raízes

Na segunda metade da década de 1960, o país tentou se libertar do comunismo e do jugo de Moscou.

Jurandir Soares

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O falecimento ontem, aos 94 anos, do escritor tcheco Milan Kundera, faz evocar não só o grande escritor que foi, com sua obra prima “A insustentável leveza do ser”, como também o que está acontecendo hoje com a Ucrânia. Kundera foi um contestador do regime comunista, que se estabeleceu em Moscou, em 1917, e que aos poucos foi dominando as nações vizinhas, a ponto de formar a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Kundera e seus conterrâneos viviam num país, então chamado Tchecoslováquia e que hoje está dividido em dois, República Tcheca, ou Tchequia, e Eslováquia. Ao final da Segunda Guerra, quando foi dividido o espólio entre os vencedores, a Rússia lançou mão sobre os países do Leste europeu, onde se incluía a Tchecoslováquia. As leis impostas por Moscou determinavam que o governo local deveria seguir as ordens de Moscou, como a censura, a existência de um único partido político (governista) e a economia planificada (gerida pelo Estado), além de aceitar a presença militar soviética em seu território.

Na segunda metade da década de 1960, o país tentou se libertar do comunismo e do jugo de Moscou. Estabeleceu-se o movimento que se chamou “Primavera de Praga”. O que se deu com a chegada ao poder de Alexander Dubcek, como primeiro secretário do Partido comunista, o qual passou a implantar reformas liberalizantes, em atenção aos clamores da massa que saía às ruas pedindo por liberdade. Ao mesmo tempo em que tinha ligação estreita com Moscou, Dubcek era próximo dos intelectuais que defendiam um “socialismo mais humano” para os países que faziam parte do bloco soviético. Após o período ditatorial de Stalin, o período subsequente foi marcado pelas reivindicações dos países que compunham a União Soviética de que dependessem menos do governo soviético. O primeiro país a se rebelar foi a Hungria, em 1956, porém, o movimento durou pouco. Os movimentos contavam com a participação de grandes intelectuais como Jean Paul Sartre. Simone de Beauvoir, Michel Foucault, entre outros.

Até a “Primavera de Praga”, Kundera debatia publicamente contra escritores mais críticos ao regime comunista, como Vaclav Havel, que viria a se tornar o último presidente da Tchecoslováquia e depois o primeiro presidente da nova República Tcheca, de 1993 a 2003. Em agosto de 1968, os tanques soviéticos invadiram a Tchecoslováquia, tomaram conta de Praga, e acabaram com o sonho de liberdade dos tchecos.

Este fato fez Kundera mudar de posição. Passou a ser um crítico do sistema soviético. Passou a escrever artigos criticando o ocorrido, o que lhe valeu uma condenação ao ostracismo, com a perda da cidadania. Seus livros foram proibidos no país e ele perdeu o cargo de professor. Em função disto, partiu para o exílio na França, em 1975. Preferiu ir em busca da liberdade de manifestação e de produção literária. Era a liberdade em troca das raízes. Cumpre ressaltar que o regime instalado na República Tcheca após a libertação do jugo soviético e a consequente redemocratização, lhe devolveu a cidadania.

A relação que faço com a guerra que hoje é travada na Ucrânia é quanto às intenções do atual ocupante do poder em Moscou. Quando Vladimir Putin ordenou o que chamou de “operação militar especial”, a 24 de fevereiro de 2022, o objetivo era repetir o que fora feito pela Rússia soviética em 1968 em Praga. Queria que seus tanques chegassem a Kiev, tomassem a cidade, destituíssem Volodimir Zelensky do poder e colocassem um títere em seu lugar. Felizmente, os tempos hoje são outros. Há de outro lado uma força militar estruturada na Organização do Tratado do Atlântico Norte que está dando o maior suporte aos ucranianos, os quais, com raras exceções, não querem saber do domínio dos russos. Infelizmente, Milan Kundera não poderá fazer um romance sobre o que está ocorrendo, mas, seguramente, partiu feliz com a determinação dos ucranianos em busca da liberdade.


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