Projeto retoma e divulga a tradição da lã

Projeto retoma e divulga a tradição da lã

Iniciativa identifica e expõe pessoas que seguem trabalhando na produção artesanal na perspectiva de manter viva a atividade e mostrá-la a todos que desejarem conhecê-la em centros de referência e roteiros turísticos

Por
Camila Pessoa*

Projeto criado em 2019 pela museóloga e gestora cultural Letícia de Cássia Costa de Oliveira e executado com apoio de prefeituras e do governo do Estado, o Lãs do RS ganhou velocidade da metade do ano passado para cá com ações como a inauguração do Centro de Referência em Artesanato, em Bagé, em setembro, e a distribuição de 3 mil exemplares de livros infantis com histórias de artesãs gaúchas para escolas e bibliotecas, em janeiro.

A criação de outros centros, em Dom Pedrito, Pinheiro Machado, Hulha Negra e São Gabriel, está prevista para este ano, assim como a oferta de uma série de oficinas, que terá sua agenda divulgada em março. A iniciativa preserva e promove uma prática tradicional do Estado e coloca as novas gerações em contato com ela.

Com esse objetivo, o Lãs do RS inclui exposições, cursos, oficinas, produção de material educativo e organização de rotas turísticas. A iniciativa é do escritório de gestão cultural de Letícia, Pangea Cultural, com financiamento da Lei Aldir Blanc e do Fundo de Apoio à Cultura (FAC-RS). O Centro de Referência em Artesanato de Bagé, que fica em um imóvel da prefeitura na avenida Santa Tecla, tem exposições e oferece informações sobre a tradição da lã no Rio Grande do Sul, além da possibilidade de contato com artesãos e compra de suas confecções quando há feiras, oficinas e cursos.

O Lãs do RS engloba outros programas, como o Fio da Meada, com ações destinadas a difundir conhecimento sobre a lã crua como patrimônio cultural imaterial do Estado; a criação do Museu da Lã; a Rede Centro de Referência em Artesanato Lãs do RS; e a Rota da Lã, um circuito de turismo em desenvolvimento que vai passar por fazendas de criação de ovelhas, centros de artesanato e outros locais relacionados aos fazeres da lã. O objetivo é criar espaços para fruição, capacitação e sensibilização a respeito do processamento tradicional da lã.

Essa prática está vinculada à própria geografia do Estado e a alguns fatos históricos. O campo aberto característico dos pampas tornou o Rio Grande do Sul um ambiente propício para a criação de ovelhas. Embora tivesse um rebanho maior no passado, o Estado ainda hoje é responsável por 98% da produção de lã do país. “Os ovinos vieram da Europa, através do Peru, do império espanhol, e (quando chegaram) houve necessidade de começar a trabalhar (a lã)”, explica Letícia, destacando que “as ovelhas foram levadas por colonizadores aos locais onde se estabeleceram para uso de sua carne e da lã”. 

Centros de Referência contarão com exposições de equipamentos e produtos da lá de ovelha em pelo menos cinco municípios da Metade Sul do Estado. O de Bagé já está em funcionamento. Foto: Letícia de Cássia / Divulgação / CP

O trabalho com a lã deu origem a uma tradição com diferentes técnicas e peças de artesanato próprias do Estado, que o Lãs do RS reuniu e catalogou, unindo artesãos para o desenvolvimento de atividades como palestras, cursos e compartilhamento de histórias. “Quando começamos a juntar as pessoas, vimos que há muitos artesãos esparramados por todo o Rio Grande do Sul”, relata Eliane Simões, assessora de projetos da Associação Pampa Gaúcho de Turismo (Apatur), parceira da Pangea na Rede Centro de Referência. “Mas também percebemos que não há renovação, essas pessoas são aquelas que já faziam, que aprenderam com os avós, que aprenderam na Campanha”, complementa.

“O patrimônio tem que ser experienciado, ele não pode só existir, não dá para ter um prédio só e ficar dizendo que aquilo é patrimônio se aquilo não tem relação com as pessoas”, sustenta Letícia, referindo-se ao propósito da criação da Rede Centro de Referência em Artesanato Lãs do RS. “A proposta da rede é criar esses centros nos locais onde vivem essas artesãs e aí poder experienciar esse patrimônio”, complementa.

O projeto adquire equipamentos para os centros, como rocas, cardas (máquina que prepara a lã para a fiação), fogareiros e panelas para o tingimento, entre outros. Esses equipamentos, além de serem expostos juntamente com peças de artesanato, são utilizados para o desenvolvimento de oficinas, que estrearam em setembro. 

“As pessoas ficam fascinadas pelo universo da lã, pelo universo da ovelha, tanto pelo animal quanto pelo produto, então a gente teve uma recepção fantástica”, diz Eliane. A assessora de projetos relata que o interesse pela lã gaúcha foi despertado nos europeus e já há previsão de uma parceria com a ONG Kollektion der Vielfalt, voltada à preservação de raças de ovelhas nativas da Alemanha.

De acordo com Eliane, o Fio da Meada e a Rede Centro de Referência em Artesanato Lãs do RS são os primeiros passos para a construção do Museu da Lã, em Bagé. Segundo a assessora de projetos, o museu será o único da região dedicado ao assunto. “Ele vai ser um museu que a gente chama ‘de fronteira’: que vai abrigar o Uruguai, a Argentina e o Chile”, explica.

Criação e artesanato como heranças familiares

Participantes do Lãs do RS recordam suas origens campeiras e narram histórias que remetem ao passado e à manutenção, para o futuro, de um conhecimento legado pelos gaúchos

Peças expostas em ambiente rural devem ser uma das atrações das rotas turísticas da lã na Metade Sul do Estado. Foto: Divulgação / CP

Clair Schneid é uma das mestras artesãs que atuam como agentes do patrimônio no Centro de Referência em Artesanato Lãs do RS em Bagé. Ela utiliza técnicas de tecelagem, feltragem (entrelaçamento de fibras da lã para formar uma espécie de tecido), lavagem, cardagem, tricô e crochê para criar peças como tapetes, xergões (mantas grossas colocadas sobre a sela do cavalo), ponchos, sapatilhas e decorações. Clair conta que começou a lidar com a lã quando tinha cerca de quatro anos. Sua avó era artesã e a ensinou a trabalhar com a lã bruta.

A artesã entende que é eficaz o trabalho feito pelo Lãs do RS. “Vejo como um resgate da nossa tradição. Nos eventos que compareço, geralmente alguém comenta que há um membro da família que trabalhou com a lã, portanto observo que há muitas famílias que desejam cultivar esta tradição, responsável pelo desenvolvimento do Estado e pela independência financeira de muitos artesãos”, comenta. 

Clair Schneid foi ensinada pela avó a trabalhar com a lã bruta. Foto: Divulgação / CP

Segundo Clair, a divulgação que o projeto faz do trabalho dos artesãos coloca-os em contato com possíveis compradores e possibilita o aperfeiçoamento de técnicas por meio de oficinas. Ela está entre as mestras que já ministraram oficinas de tecelagem (em tear de prego, de pente liço e em tear primitivo), de feltragem (molhada e agulhada) e de peças decorativas e vestuário em crochê e tricô.

No sangue

A veterinária Clara Vaz diz que a criação de ovelhas para lã é uma tradição familiar, que ela segue mantendo. “Produzir lã está no sangue”, ressalta. “Meus avós eram criadores, meus pais também. Vendiam a lã para a indústria, através de cooperativas e depois por barracas.”

Entre as raças criadas por Clara estão a Merino Australiano, que produz lã fina, de maior qualidade, e a Crioula, com lã naturalmente colorida em diferentes tons e utilizada em peças de decoração e artigos de tapeçaria. “As fibras produzidas pela raça Crioula são longas. O conjunto de fibras forma mechas individuais utilizadas para produzir o cochonilho (tapeçaria utilizada para substituir o pelego usado nas montarias pelo gaúcho). Meu avô mandava elaborar cochonilhos brancos para uso de Borges de Medeiros nas revoluções entre Chimangos e Maragatos”, relata a produtora, que já sabia fiar e ajudar na limpeza e preparo da lã aos quatro anos e, aos 10, aprendeu a fazer tricô. Para Clara, além de fonte de renda, o trabalho com a lã desperta a criatividade e a memória. “(A lã) traz toda a história das mulheres pampeanas que dependiam dessa atividade para vestir seus filhos, proteger o marido das intempéries e colaborar nas revoluções que moldaram nosso Estado”, afirma.

Filha e neta de criadores de ovelhas, Clara Vaz aprendeu a fiar aos quatro anos. Foto: Hamilton Vaz / Divulgação / CP

Segundo Clara, a indústria da lã enfrenta dificuldades, mas a procura pelo produto diferenciado, para uso artesanal, é crescente. Ela diz que os consumidores de matéria-prima têm tido acesso a lãs com mais qualidade e a troca de lã por outros bens (escambo) está sendo eliminada. Já para o consumidor final, o mercado está se organizando melhor e oferecendo produtos de mais qualidade. “O grande beneficiado nisso tudo é o Estado, pois um artesanato organizado sob a ótica do conhecimento tradicional, usando uma matéria-prima que faz parte da cultura gaúcha, abre fronteiras para o turismo rural”, conclui.

*Sob supervisão de Elder Ogliari

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895