Enchentes no RS podem servir para Brasil inverter a lógica das mudanças climáticas, diz especialista

Enchentes no RS podem servir para Brasil inverter a lógica das mudanças climáticas, diz especialista

Francisco Aquino fala sobre a intensificação dos fenômenos nos últimos cinco anos no Estado

Flavia Bemfica

A Capital, Porto Alegre, antes e depois da tragédia causada pelas chuvas

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É verdade que as chuvas que chegaram ao Rio Grande do Sul nos últimos dias de abril foram adiantadas pelos sistemas de alertas meteorológicos como mais um dos eventos extremos a atingir o Estado. O que ninguém previu foi o tamanho da devastação, que acabou por transformar os gaúchos, e seu território, em protagonistas do marco da mudança do clima no país. Na entrevista a seguir, o climatologista Francisco Eliseu Aquino explica a combinação de fatores que resultou na destruição, e projeta o que virá depois da emergência. Chefe do Departamento de Geografia da Ufrgs, o professor pesquisa mudanças climáticas globais e eventos extremos há três décadas. E soma 17 expedições ao continente antártico no currículo. Confira.

Correio do Povo: O RS vive uma calamidade climática sem precedentes. Os eventos extremos vieram para ficar?

Francisco Aquino: O clima do Rio Grande do Sul mudou. Hoje está cerca de 1,5°C, em média, mais quente do que há 30 anos. E tem mais chuvas. Podemos dizer que, em média, 10% mais. Mas não é só isto. A concentração das chuvas também aumentou. Grandes volumes em espaços menores de tempo. Com a mudança climática, a intensificação destes eventos é cada vez maior, e eles se tornam duradouros. Há uma tendência de intercalação entre estiagem e inundação. Grosso modo, o RS inteiro tende a sofrer consequências de inundações, chuvas intensas, estiagem, granizo e vendaval. Além de catástrofes como a atual, o aumento da temperatura favorece invernos mais mornos e quentes. Que, no nosso caso, contribuem para outros problemas, como o aumento de doenças como a dengue.

CP: As mudanças climáticas eram projetadas para este momento no RS? Nesta intensidade?

FA: Todos os eventos meteorológicos monitorados nos últimos anos, sejam ciclones, frentes frias, tempestades severas, inundações, granizo, ondas de calor, estiagem, eles já ocorriam no RS. Porém, com a mudança climática, ganharam intensidade e frequência. A partir de 2016, observamos um maior número de eventos extremos. E há uma aceleração nos últimos cinco anos. No ano passado, duas inundações históricas. Mais a de agora, que supera 1941. Existem os efeitos do El Niño, não podemos deixar de mencionar. Mas sabemos que a maior contribuição para a intensidade do que estamos vendo é a mudança do clima. Não há dúvidas sobre isto. O ambiente atmosférico trópico/polo está cada vez mais intensificado.

CP: Estamos acelerando a mudança do clima?

FA: Sim, estamos. Os eventos extremos vão ficar ainda mais intensos a partir de 2040. E nós até meio que já estamos descartando que o El Niño será então o grande responsável por eles. É certeiro, por exemplo, que, se seguirmos flexibilizando ou burlando regras ambientais, os cenários serão ainda mais desafiadores e calamitosos. A mudança climática é guiada pela nossa íntima e contínua utilização de combustíveis fósseis. A transição energética pode ser considerada lenta. Mas não é só. Há os gases do efeito estufa, o desmatamento, o afrouxamento de regras, a cultura em relação a hábitos de consumo e a forma de encarar o desenvolvimento social e econômico de uma nação.

CP: É possível desacelerar?

FA: Já sabemos de muitas das coisas que vão acontecer. Mas precisamos de legislação e iniciativa. Vamos lembrar de 2015 e do Acordo de Paris. Queríamos evitar o aumento de 1,5°C na temperatura média. Perdemos 10 anos fazendo quase nada e estamos aí com o 1,5°C e os eventos extremos crescendo. Nossa melhor saída, do ponto de vista da ciência, é a preservação ambiental de modo amplo e geral. A flexibilização de regras incrementa todos os desastres, ou a interconexão entre eles. O que quero dizer: preservar nascentes, margens de encostas, de rios, áreas de várzea e planícies de inundação, que são excepcionalmente necessárias nestes momentos. E importantíssimas para o arrefecimento da temperatura média global, ou então para minimizar ou suavizar estiagens e ondas de calor.

CP: Se há um entendimento generalizado sobre a importância da preservação do meio ambiente, por que é tão difícil colocá-la em prática?

FA: Infelizmente, seguimos devagar, ou mesmo no caminho oposto, ao do melhor enfrentamento dos desastres decorrentes da mudança climática. A preservação ambiental e as mudanças do clima entram no debate público, mas ainda sob o viés de dar um verniz para uma agenda, e não como política pública consolidada. Temos, no Brasil, uma realidade ainda de deficiências de manutenção em serviços básicos, como escolas, postos de saúde, infraestrutura de modo geral. Isto talvez ajude a responder porque tem sido tão lento, do ponto de vista da gestão pública, o avanço. Temos dificuldades em progredir em pautas simples, como a ampliação significativa de ciclovias em cidades do tamanho de Porto Alegre. É evidente que há também uma questão de cultura, de entendimento de necessidades.

CP: É possível dizer que o Brasil, majoritariamente, ainda não compreendeu o quanto a questão ambiental é urgente?

FA: A percepção de risco da sociedade não é adequada. É necessário investir muito em educação ambiental. Não há recurso financeiro no Brasil ou no mundo que vá funcionar como seguro para as intempéries da magnitude da que estamos passando. Só uma política pública, obviamente associada a iniciativas privadas, pode vencer o desafio do planejamento estratégico para as próximas décadas. Hoje, o que ocorre no RS traduz nossa situação: usamos a maior parte do tempo e dos recursos em socorro, emergência e reconstrução, ou mobilização rápida. Precisamos inverter esta lógica. Passar para uma lógica de investimento em prevenção e planejamento.

CP: Apesar da urgência, o caminho parece ser longo...

FA: Sim, temos um caminho longo, mas ele precisa ser trilhado logo. Vou dar um exemplo: aqui, tínhamos ótimas pontes, bem construídas, sólidas. Mas a mudança do clima aumentou a vazão dos rios, ampliou os eventos extremos, e hoje essa infraestrutura não está suportando a sequência dos acontecimentos. Portanto, teremos que fazer pontes mais reforçadas, mais altas, remodelar traçados específicos. Há casos de comunidades, bairros e alguns pequenos municípios que se encontram em áreas circulares inundáveis. Vamos precisar repensar sua situação geográfica. Qual a capacidade de recuperação de uma cidade que, pela terceira vez, está completamente inundada em menos de um ano. Que alternativas vamos oferecer para sua população?

CP: O senhor se refere a investimentos em novas tecnologias e infraestrutura?

FA: As instituições de pesquisa no Brasil têm ciência, pessoal e tecnologia para portar conhecimento nas mais diversas áreas no que se refere à preservação do meio ambiente, à prevenção ou ao enfrentamento de tragédias climáticas. Hoje, já observamos uma melhoria nos sistemas de alerta, mas a adesão pública ainda é baixa. Há equipes técnicas e coordenações cada vez mais organizadas. A ocorrência dos eventos que assolam o RS agora foi fartamente comunicada pelas projeções meteorológicas, com mais de uma semana de antecedência. Temos os canais para este diálogo, e ele está acontecendo. Isto tudo está no caminho certo. Mas é urgente acelerar, e muito, a ampliação das estruturas e sistemas de Defesa Civil nos municípios. Em grande parte deles, as vezes a Defesa Civil tem uma pessoa. Se tivermos Defesa Civil bem estruturada nas cidades, mais políticas públicas nacional e estadual sobre mudanças do clima, mais atuação forte dos órgãos ambientais, o caminho vai se alargar.

CP: É uma configuração que parece distante.

FA: A educação e a cultura a respeito de desastres ambientais são mínimas, para não dizer muito deficientes. E há uma visão de legislação, de gestão pública, que não considera essas questões ambientais como reais prioridades. Isto é um fato. O conhecimento que geramos, o investimento no entendimento dos eventos extremos, acaba batendo de frente em um outro tipo de visão, de comportamento, que não está preparado para recebê-lo. Então, sim, é necessário que mudemos nossa percepção de um modo geral. Por exemplo: a defesa do meio ambiente não impede o desenvolvimento da agricultura. É o contrário. A preservação ambiental favorece recursos hídricos e outras condições que beneficiam a agricultura. No Brasil, na última década, houve o enfraquecimento das políticas para este entendimento. Enquanto isso, em lugares como a Coreia do Sul, ou Taiwan, o investimento em ciência e tecnologia em relação a questão ambiental está gerando uma participação enorme em economia e mercado.

CP: Há algo de positivo no cenário atual?

FA: Sim, há uma janela de oportunidade. Os anos de 2023 e 2024 abrem muitas possibilidades para a organização e instalação de políticas públicas e outras ações que priorizem a relação entre preservação do meio ambiente e mudança do clima. Para que este entendimento chegue melhor a todos: nas escolas, nas comunidades, nos tomadores de decisão. Facilitam que em Câmaras de Vereadores e na Assembleia Legislativa surjam pautas realmente voltadas a esta relação. Há 10 anos, já alertávamos para o que vem ocorrendo. Imagine, a partir do que estamos passando, o cenário daqui a cinco anos. Então, agora, é o momento de fazermos o dever de casa. Temos a chance de usar estes desastres e todos os seus impactos para colocar em prática iniciativas e políticas que demonstrem nosso aprendizado. O de que, quando se trata do meio ambiente, cautela, prevenção e investimentos eficientes são as melhores saídas, sempre.


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