Ilhota: conheça a história do território negro no centro de Porto Alegre

Ilhota: conheça a história do território negro no centro de Porto Alegre

Área que já abrigou 2,5 mil famílias perdeu sua dimensão territorial ao longo do tempo sob a sombra do “progresso urbano”

Brenda Fernández

Escadaria Esperança atravessa comunidade entre a avenida Ipiranga e a rua Dezessete de Junho

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Na região central de Porto Alegre, cercada de ruas que levam nomes de coroneis e marechais, está a autointitulada Território Ilhota, território negro que vive desde 1900 apagamentos e transformações da cidade. Inúmeras vilas do entorno, como a Lupicínio, Renascença I e Renascença II, todas hoje regularizadas, são remanescentes do despejo da Ilhota, ocorrido no final da década de 70.

Hoje, o Território Ilhota conta com 44 casas, uma comunidade com cerca de 200 pessoas. Quem viveu a drástica mudança ou se depara com as fotos antigas demora a entender como uma região que já foi tão grande, acomodando 23 comunidades e 2,5 mil famílias, perdeu sua dimensão territorial. À margem do Arroio Dilúvio, a vila fica entre a avenida Ipiranga e a rua Dezessete de Junho.

Antiga Vila da Ilhota nas proximidades da Avenida Ipiranga em Porto Alegre | Foto: Luiz Abreu / CP Memória

“Eram negros, negras e campesinos, que vieram do exôdo rural, que pararam aqui. A maioria trabalhava no Alto da Bronze. Eu vim pra cá com 7 ou 8 anos”, lembra Angélica Celeste Mirinhã da primeira vez que morou na Ilhota. Depois saiu e acabou voltando, após o despejo. A psicóloga e ativista comunitária foi uma das beneficiárias de imóveis levantados na região por meio do Orçamento Participativo. “Eu passei por todo esse processo sem saber. Só no ano 2000 que eu fui descobrir que éramos herdeiros da Ilhota”, conta.

Os antepassados de Angélica e de outras centenas de pessoas chegaram a partir de meados de 1900 naquela região por um motivo bastante simples: oportunidade de trabalho. A localização próxima ao Centro da cidade compensava as condições do terreno, que era bem alagadiço. Cercada pelo antigo curso do Arroio Dilúvio, a região ficava inundada com facilidade em episódios de chuvas, tornando-se uma ilhota.

Em 1979, as famílias são despejadas do lugar. Seus pertences são colocados em caminhões e os barracos desmontados para dar lugar às obras de aterro e ampliação do sistema viários da região. As famílias foram para regiões distantes e com infraestrutura ainda mais precárias.

Isso tudo porque a Ilhota foi a “área-piloto” para o Projeto Renascença. “Há, na Metrópole, um grande número de áreas que se encontram total ou parcialmente desocupadas ou ainda ocupadas de maneira não uniforme ou desejável - segundo os critérios estabelecidos pelo Plano Diretor para as mesmas”, descreve o Executivo da época em documento enviado à Câmara dos Vereadores, e conclui: “em qualquer dos casos, caracteriza-se a ociosidade no aproveitamento dessas infra-estruturas existentes”. O projeto defendia que as áreas estavam “artificialmente sem ocupação à espera da valorização imobiliária” por conta da boa localização e do rápido desenvolvimento urbano que rodeava os bairros vizinhos.

O perímetro escolhido foi de 400 hectares, abrangendo bairros como Azenha e Cidade Baixa. A área foi dividida por setores, que previam a reconstrução da rede pluvial, o aterro de terrenos e a inclusão do Parque Marinha do Brasil, inaugurado um ano antes, em 1978.

“Como a gente se insere num lugar que já tem história?”

O Território Ilhota e a Escola Projeto têm algo em comum: ambas têm portas e janelas para o Arroio Dilúvio. No ano passado, a Projeto trocou sua sede no entorno da Redenção pela avenida Ipiranga. A troca de CEP as fez vizinhas e deu início a uma série de trocas e amizades.

“Fomos conhecer o entorno. Como a gente se insere num lugar que já tem uma história?”, pensou a professora Amanda Mendonça Rodrigues, que também é sobrinha-bisneta de Lupicínio Rodrigues, sambista que nasceu na Ilhota em 1914. A resposta veio logo: “vamos contar a história de Porto Alegre através da presença negra e com a Ilhota”.

O projeto foi desenvolvido com os alunos do 3º ano do ensino fundamental, crianças entre 8 e 9 anos. As atividades ocorreram na escola, com a presença da líder Angélica, e também com visitas no Território Ilhota. A sala de aula ao ar livre e com convidados permitiu que os alunos conhecessem novas pessoas, novas histórias e novos espaços.

Angélica entrou para a família Projeto, conta a coordenadora pedagógica Deborah Vier Fischer. Os alunos fizeram questão de transformar a ativista comunitária em personagem 3D de um jogo de tabuleiro criado por eles. O senso de comunidade criou uma ponte sobre a Ipiranga aproximando escola e Ilhota. “Fizemos questão de mostrar que tem o Lupi, mas quem está no território agora é a Angélica e as outras famílias”, pontua a Amanda.

Fortalecimento comunitário

Angélica Celeste Mirinhã também é responsável pelo Ponto de Cultura Território Ilhota, um projeto para fortalecimento comunitário, com oficinas culturais e de formação de renda. Mas também um espaço político. Anexada a sua casa, um espaço acolhe reuniões e articulações em defesa da história e dos direitos dos moradores da vila. A lista de pautas é extensa: adotar a praça ao lado da vila para poder cuidar e desenvolver projetos; ter um espaço para retomar a horta comunitária; arrumar as garças de cimento que enfeitavam a margem do arroio e foram danificadas durante uma ação da prefeitura; um espaço seguro para as crianças da vila brincarem; e muitas outras ações que na visão de Angélica seriam fáceis de resolver.

Um desses projetos era cuidar da Praça Garibaldi dentro do projeto Prefeito da Praça, um cargo voluntário que tem como função principal auxiliar o município nos cuidados com o bem público. “A praça tem papel importante na história da Ilhota. Era ali que Lupicínio, escolas de samba e blocos se reuniam”, conta Angélica. Mas o tento não foi adiante, pois a praça já era adotada. “Tentamos então adotar a Praça Augusto César Sandino e nos disseram que o espaço não era considerado praça, que nem estava no mapa.” A ideia é que o espaço pequeno de terra, na esquina entre Ipiranga e Érico, praticamente integrada à Ilhota, leve o nome da comunidade ao invés de homenagear o revolucionário nicaraguense. Para isso, um abaixo-assinado foi feito.

Mesmo com a regularização do território, a conquista não facilitou outras. Angélica afirma que os projetos acabam “patinando” e parte disso vem de uma exclusão que a comunidade sofre desde sempre. “Os negros aqui em Porto Alegre estão sufocados”, desabafa.

A líder comunitária também sonha em colocar o bairro onde nasceu Lupicínio Rodrigues no turismo da cidade. “Um turismo comunitário, sabe? Os grupos que exploram a cidade a pé podem passar por aqui, conhecer a escadaria”, explica ao demonstrar um certo ressentimento ao território ser conhecido apenas por ser berço do sambista e não, também, pelas histórias de resistências e outras figuras que ali passaram. Placas e estátuas poderiam ajudar a contar a história do local.

A escadaria que Angélica citou carrega o nome de Esperança. Um corredor colorido por mosaico que atravessa o quarteirão, ligando a Ipiranga à Dezessete de Junho, e funciona como a artéria principal da vila. A intervenção com colagem de pequenas peças de pedra nos degraus ocorreu durante uma oficina de criatividade realizada pelo Ponto de Cultura. A arte embelezou e elevou a autoestima da comunidade. O cuidado dos moradores com o espaço também se reflete em outros pontos, como muros e postes com desenhos e frases como “A Ilhota vive”, “Coragem”, “Esperança”.

Quando imagina como seria a representação da Ilhota, Angélica vê uma mulher negra, grávida, sentada num tambor. Um globo iluminado pintado na barriga da mulher. Essa é a imagem da “Negra Ilhota”, que a moradora sonha em ver instalada na Praça Garibaldi, aos olhos do presente e do futuro do seu território.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895