Visualmente, Orson Welles queria se afastar do classicismo de seus trabalhos anteriores para assinar um longa-metragem "sem qualquer intriga", nem preceitos de realização impostos pela indústria americana. E tudo com um objetivo: tornar "The Other Side Of The Wind" seu "grande filme".
Sátira de Hollywood, a produção com toques autobiográficos, trilha sonora do compositor francês Michel Legrand e no qual Welles ironiza o cinema emergente da época e seus ícones oferece algo muito denso, um erotismo inédito, na psique do diretor de "Cidadão Kane". Foi preciso uma década para completar o filme e reviver sua mitologia, após negociações dos direitos, finalmente adquiridos em 2014.
"A viagem foi longa para reviver o filme. Nenhum estúdio queria se jogar na aventura até aparecer a Netflix - que pagou 5 milhões de euros. Nós tivemos carta branca", detalhou um dos dois produtores, Filip Jan Rymsza, durante o festival Lumière de Lyon, onde foi projetado. Para completar o longa-metragem, a produção chamou o montador Bob Murawski, que contou com os quase 40 minutos de cenas de Welles antes de sua morte em 1985, mas também com notas muito precisas de intenção e várias versões do roteiro imaginado pelo mestre com sua última companheira, a atriz Oja Kodar.
Batalha na justiça
Em "They'll Love Me When I'm Dead", documentário de Morgan Neville sobre a gênese do projeto e os bastidores das filmagens, uma sequência mostra o cineasta fazendo uma série de confissões a um grupo de jornalistas em uma tarde de 1966. Vivendo na Europa há vários anos depois que se sentiu "traído" pela indústria americana, Welles expôs publicamente pela primeira vez o desejo de fazer um filme sobre Hollywood "na forma de um documentário e no qual aconteceriam acidentes divinos porque os atores improvisariam".
A partir de 1970 e durante cinco anos, o diretor começou a trabalhar apesar da falta de financiamento para filmar cenas do filme constantemente reescrito, sem saber quem interpretaria o papel do diretor Jake Hannaford. Ele finalmente entregou o papel principal ao seu amigo John Huston, magnífico em sua interpretação desta caricatura "wellesiana".
No set, Orson Welles justifica sua reputação como um gênio autoritário e perfeccionista, exaurindo suas tropas. "Era um circo de almas espalhadas", disse uma colaboradora da época. Depois que os primeiros problemas de financiamento apareceram durante as filmagens o filme foi finalmente interrompido em 1979, depois que Medhi Bushehri, cunhado do Xá do Irã envolvido na produção, decidiu bloquear os negativos.
Welles salvou parte das centenas de horas e tentou até a sua morte vencer a batalha nos tribunais, sem sucesso. "Se algo acontecer comigo, prometa-me terminar o filme", pediu ao cineasta Peter Bogdanovich, que encarnou no filme o personagem de um jovem diretor promissor, o que ele era na época. O ator e diretor também foi o primeiro, após a morte de Welles em 1985, a se aproximar dos detentores dos direitos para tentar acabar com a disputa de herdeiros e terminar o filme para manter sua promessa.
"Este filme é produto de um triste lixo (...) É a conclusão trágica de 'Cidadão Kane'", disse Orson Welles, deprimido, quando o filme estava paralisado. "The Other Side Of The Wind" e "They'll Love Me When I'm Dead" serão lançados na plataforma Netflix em 2 de novembro.
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AFP