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Verão

Especial

Espere a primavera

Eram dias e noites de esperas. A vida também era assim, fazíamos alguma coisa sempre pensando noutra (...)

| Foto: Leonid Streliaev / CP

Os dias chegavam ajoujados, um depois do outro, numa monotonia irritante. Nas soalheiras de janeiro, esperávamos pelo outono, quando o sol amainava sua fúria, a sombra dos cinamomos ficava aprazível para sestear depois do meio-dia. Nesses dias lia “Lendas do Sul”, um antigo livro de capa dura com tons de vinho e bastante desbotada. Em algumas folhas amareladas se tornava difícil diferenciar as letras, mas era o que tínhamos. Precisava imaginar e, muitas vezes, criava palavras para completar o texto extinto. O que não sabia, por certo intuía. Ali pelo fim de maio, um vento frio soprava ao final das tardes e sabíamos que vinha friagem logo em seguida. Esperávamos. Por precaução, tirava de dentro de uma velha caixa de madeira o poncho furado de baeta colorada, pesado, que o pai havia aposentado da lida mas ainda servia como coberta naquelas invernias. 

Eram dias e noites de esperas. A vida também era assim, fazíamos alguma coisa sempre pensando noutra porque tudo estava interligado. O presente era fruto do passado e o futuro ninguém conseguia projetar. Tudo chegava indefinido em uma névoa de incertezas. Nada, absolutamente nada, continha nitidez, porque trazia consigo o estigma da espera. Os clientes que chegavam ao bolicho em bicicletas coloridas e enfeitadas, em tratores sujos de terra das lavouras, entravam e pediam uma cerveja, um copo de aguardente com bitter e ficavam mudos, sentados. Esperando sabe-se lá o quê. Comunicavam-se mais com sons guturais e sinais do que com palavras, eram códigos que a gente sabia de cor. Um movimento de dedo indicador e polegar era um liso, puro. A mão aberta passando em faixa no peito era cerveja. Depois sentavam, sorviam a bebida e esperavam tranquilamente o tempo passar.

Então, certa tarde, lendo um caderno de cultura de uma edição antiga do Correio do Povo, tomei a decisão de me bandear. Um dia, iria montar naquele trem que passava a pouco mais de 500 metros da estrada real e conhecer outras paragens. “Se ficar aqui envelheço muito cedo”, pensei comigo mesmo. Eu via rapazes de 25, 30 anos estacionarem caminhonetes em frente ao bolicho para tomar um trago, e enxergava naqueles olhos poucos sonhos. Havia cansaço e resignação; eu queria mais. Queria conhecer o mundo, ser diferente. Igual e diferente. Mas sabia que era difícil, minhas chances eram remotas por ser o filho de uma bolicheira e de um funcionário público e tropeiro. 

Porém lia e sonhava. E esperava. Lia tudo o que via pela frente, naquela época que não existia Internet e celular. O conhecimento estava nos livros e jornais. Conversava e ouvia muitos pessoas. Seu Turíbio, por exemplo, aguardava pela aposentadoria, que nunca chegava. E me dizia, “espere a primavera, daí fica mais fácil. Tempo quente e o coração mais mole”. Foi mesmo num final de primavera que juntei meus mijados, a faquinha de prata, a pequena cuia e a bomba de alpaca que ganhei de um tio, e entrei no trem para Santa Maria. Depois, iria ganhar o mundo. Antes, quando me dirigia a pé para a estação, enxerguei, debaixo das taquareiras, no fundo do pequeno sítio, seu Turíbio mateando, despacito. Esperando. Naquela primavera decidi não esperar mais. Quando voltei à Vila Rica, pouca coisa existia ainda. Não havia mais bolicho. Nem o Turíbio.