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Verão

Especial

José Celso Martinez Corrêa: "Não adianta resistir. O importante é reexistir"

Nesta entrevista ao Caderno de Sábado, aos 81 anos de idade, o ator incendeia-se de paixão pela arte

Zé Celso, está em Porto Alegre com a montagem de "O Rei da Vela" | Foto: Jennifer Glass / Divulgação / CP

Figura mítica do teatro brasileiro, José Celso Martinez Corrêa, mais conhecido como Zé Celso, está em Porto Alegre, num especial de Porto Alegre em Cena, com a montagem de "O Rei da Vela", peça mítica de Oswald de Andrade. Nesta entrevista ao Caderno de Sábado, aos 81 anos de idade, Zé Celso incendeia-se de paixão pela arte.

Caderno de Sábado – Qual o lugar do teatro na sociedade dos youtubers?
Zé Celso – O lugar do teatro é o da natureza, da cosmopolítica, conceito que permite ver além do ponto de vista social, também do ponto de vista político, pois a grande contradição hoje é entre o capitalismo selvagem, rentista, e as lutas dos indígenas pela terra, essa terra-planeta, essa coisa concreta que estamos pisando agora. Eu me considero um índio. Minha avó era índia. Assumi o Teatro Oficina há 60 anos. Faz quatro décadas que lutamos por uma área com um personagem do capitalismo videofinanceiro, que é o Sílvio Santos. É uma luta muito bonita. Ela revela o capitalismo financeiro. Sílvio quer construir edifícios em torno do nosso teatro. Ele havia desistido. Aceitava trocar o terreno dele por outro do mesmo valor. Conseguimos. Aí veio o impeachment e tudo mudou. Geraldo Alckmin e João Doria ofereceram para ele o monopólio de revitalização do bairro Bexiga. É uma periferia central onde nasceu o teatro moderno brasileiro. O umbigo de São Paulo. Essa revitalização é um genocídio. Prédios de cem metros. O teatro está em luta contra a especulação financeira.

CS – Onde está a arte na sociedade de mercado?
Zé Celso – A arte é uma potência da natureza. Ela está na infraestrutura da vida, no chão que se pisa, no ar que se respira, em toda parte com força inspiradora e de onde tiramos a nossa energia.

CS – Dá para fazer a antropofagia do mercado?
Zé Celso – É o que acontece em “O Rei da Vela”, peça montada 51 anos atrás e que é absolutamente contemporânea de maneira poética. A arte é essa potência que a natureza tem de ver o mundo através da poesia. Em épocas de crise, o teatro lota por ser o lugar do encontro corpo a corpo. Enquanto a Internet se desmoraliza com as fake news, o teatro dá corpo. Aqui, de Porto Alegre, passamos um WhatsApp para o Caetano Veloso propondo uma ação comum. Ele se indignou com o assassinato daquele capoeirista, na Bahia. Depois, escreveu uma carta criticando o Olavo de Carvalho. Esse boçal respondeu esculhambando o Caetano. A antropofagia atual tem a ver com tudo isso, com comer este momento.

CS – O que Rei da Vela, montada em 1967, diz hoje?
Zé Celso – Montada durante a ditadura do Castello Branco, no ano anterior ao AI-5, diz hoje tudo e mais, muito mais. Oswald de Andrade dizia que há um momento em que a burguesia se declara cansada de carregar a velha máscara liberal, as conquistas da civilização e outras besteiras e se organiza como classe policialmente. Ele escreveu a peça em 1933, começo da ascensão do nazismo, e publicou em 1937. Acontece uma primavera cultural quando o público vê o espetáculo.

CS – O que significa essa imagem?
Zé Celso – Uma primavera do país. É o momento da transfiguração. Oswald de Andrade dedicou “O Rei da Vela” a esse enjeitado, o teatro brasileiro. Foi assim que ele escreveu. É um enjeitado que as pessoas procuram nos momentos de crise e aí acontece essa primavera. Percebo isso também no Carnaval de rua de São Paulo. Há vários sintomas. Em 1965, na Cinelândia, o povo cantava “tristeza, por favor, vá embora”.

CS – O significado de Oswald de Andrade na sua vida?
Zé Celso – Na minha vida, assim como na brasileira e na mundial, Oswald de Andrade conta muito. Ele, Nietzsche e Artaud foram os filósofos que me alimentaram. Antropofagia pura. Oswald tem uma dimensão desconhecida. Agora, vai ser editado pela Companhia das Letras e ficará mais conhecido. A leitura dele não é fácil. O grande romance dele, “Serafim Pontegrande”, é uma obra-prima, parece um filme de Godard. A leitura exige considerar o espaço, o título, toda uma coisa nova. O Brasil sempre foi muito acostumado com a literatura realista. Ele tentou se adaptar ao escrever “Marco Zero”, um livro lindo com a mistura de todos os sotaques de São Paulo da época no grande encontro entre os integralistas, de verde, na Avenida Paulista, e os operários vindos do Brás, marco zero da cidade. Um filosofo antimessiânico.

CS – Ele foi o nosso Homero?
Zé Celso – Ele é o nosso Homero. Inclusive pelas teses filosóficas dele. Nada mais atual do que a situação da filosofia messiânica.

CS – Resistir não adianta. O que é reexistir?
Zé Celso – Eu sempre digo: não adianta resistir. O importante é reexistir. Resistir é ficar segurando uma ideia. Quando o inimigo muda, é preciso mudar também. A mudança exige uma nova estratégia.

CS – O teatro reexiste?
Zé Celso – O teatro se reinventa em função dos dias, da hora, do instante. O ator em cena absorve o público presente e capta a energia da época. “O Rei da Vela” capta essa energia da primavera do Brasil. Só a cultura produz viradas. A cultura foi considerada dispensável. Os candidatos nem a mencionavam. Mas voltou com o incêndio do Museu Nacional. Cultura é o cultivo da vida. Não existiu revolução sem grandes acontecimentos culturais. Depois da revolução russa se viveu o maior momento de arte pública no mundo, com Maiakóvski, com o cinema, os escultores. Maiakóvski, nessa época, inventou a publicidade.

CS – Por que preferir “presentação” à representação?
Zé Celso – Dá para representar, colocar uma máscara, porém teatro é o ato de estar em cena fazendo emanar uma energia, um combustível acumulado nos ensaios. Isso produz paixão e uma cultura nova. Cada peça faz nascer uma cultura se for feita criadoramente. Há coisas na cultura que são eternas. A cultura de “O Rei da Vela” de 1967 e de 2018 é a mesma. Monto e remonto “As Bacantes”. São várias reexistências. O teatro é a eternidade do tempo. No tempo de hoje, Rei da Vela é ainda mais contundente. Em Porto Alegre, vai ser extremamente contundente. E assim será em três dias em São Paulo, no auditório Ibirapuera.

CS – E "Roda Viva"?
Zé Celso – É irmã do Rei da Vela. Texto de um jovem poeta, Chico Buarque, que se inspirou em “O Rei da Vela”. Tenho certeza de que ele viu Rei da Vela antes de escrever. Já tinha trabalhado comigo em “Os Inimigos”. Foi uma revolução no teatrinho Princesa Isabel: não tinha separação de palco e plateia, tocavam os corpos. E tudo isso foi esmagado em São Paulo, em 1968, pelo Comando de Caça aos Comunistas, grupo paramilitar, e em Porto Alegre. Bateram nas mulheres, sobretudo em Marilia Pêra. Quando voltei da estreia em Porto Alegre, houve a invasão do hotel pelo Exército, bateram nas pessoas e raptaram a atriz, o violinista, levaram para o mato e quiseram estuprar. Botaram todo mundo ferido num ônibus e mandaram para São Paulo. Estou fazendo de nova essa peça que trata da fabricação de mito. É importante.

CS – Como se explica que as pessoas voltem ao teatro nestes tempos de sociedade do espetáculo e de cultura digital?
Zé Celso – Porque as pessoas têm corpo. Elas precisam de um lugar onde o corpo exista e transmita alguma coisa. Necessitam da concretude. Eu sou um anarquista coroado, como Artaud, e me remeto a Oswald de Andrade, que, em 1928, no Manifesto Antropofágico, declarava: eu não sou mais moderno, sou o primeiro poeta pós-moderno do mundo. Era o retorno ao tupi, ao índio. Uma perspectiva que desdenha o poder. O Oficina é assim. Quando começamos a virar instituição, desbundamos. A grande política é a arte. Maquiavel já sabia disso.

Juremir Machado da Silva