Não longe de Ouarzazate, no Marrocos, uma iguana encontrou um camelo. Como já disse um escritor anônimo, sobre aquelas paisagens com suas casas ocres incrustadas nas rochas, “nada mais desértico e melancólico do que aquelas habitações de costas para o sol”. Engano dele. Há mais triste. Ele se deixou fascinar por “cemitérios com pequenas aberturas onde moravam seres invisíveis, leito berbere de vidas escondidas no ventre da natureza majestosa”. A conversa entre a iguana e o camelo poderia entrar numa antologia dos bestiários (diálogos entre animais) filosóficos contemporâneos. Disse a iguana:
– Como você consegue atravessar o deserto?
– Com o reservatório cheio – respondeu laconicamente o camelo.
A iguana ficou quieta. Diante deles já se estendia a solidão arenosa. O camelo não parecia preocupado. Esperava a hora de partir. A iguana, depois de alguma hesitação, voltou à carga com voz sinuosa:
– O que é preciso para uma travessia segura?
O camelo conhecia a proverbial curiosidade das iguanas, tidas por tagarelas. Já havia conversado com muitas. A sua interlocutora tinha listras escuras no corpinho. O camelo sabia que era uma iguana velha. Sentiu empatia por ela. Aceitou dar uma resposta mais objetiva:
– Precisa ter alma de camelo.
A iguana não sabia o que dizer. Era a primeira vez que ouvia falar em alma de camelo. Iguanas têm alma? Foi a pergunta que lhe ocorreu. Um ditado veio-lhe à mente fazendo com que se tornasse fosforescente como quando era jovem e cheia de ilusões. Balbuciou:
– La traversée du désert c’est pour les forts.
– Ah, não. Quer dizer, depende – contestou o camelo.
– Como assim? Só os fortes sobrevivem à travessia do deserto.
– Bem, eu sou forte por natureza para essa travessia, mas os fracos também podem conseguir – explicou calmamente o camelo.
Por um momento, ouviu-se o silêncio do deserto cortado por vozes lancinantes de um grupo que chorava um morto. A iguana ficou pensando se era forte ou fraca. Como era relativista, considerou que a resposta dependia do ponto de vista, da cultura e das situações concretas. O camelo, que tinha veleidades literárias, empolgou-se e discursou:
– O deserto é o mundo. Nele, somos grãos de areia. O deserto nos traga e nos assusta, mas queremos mergulhar nas suas entranhas. Às vezes, achamos que podemos modificá-lo pela nossa vontade. Tudo o que podemos fazer, no entanto, é sair do outro lado, por algumas vezes, vivos. No fim, o deserto sempre vence. Voltamos a ser grãos de areia.
Uma leve depressão fez a iguana estremecer. Não se conteve. Repetiu a pergunta para a qual já tinha obtido a resposta:
– Então para atravessar o deserto basta ter alma de camelo?
Iguanas conhecem bem o deserto. São muito resilientes. Suportam o calor e o frio, a melancolia e o tempo. O camelo estranhou aquela insistência toda. Não quis, porém, discutir com a velha senhora. Melhor não provocar as obsessões alheias. Decidiu liquidar o assunto:
– Basta ter alma de camelo e versatilidade de iguana.
Moral da história: cronistas têm cada ideia! Vivem disso.