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Verão

Especial

Autorretrato em cores cruas

Pasticharia

 

Não atravesso montanhas geladas nem recorto oceanos,

Contento-me em reler Pessoa antes da novela das nove

Não enfrento maravilhosos e insondáveis perigos há anos

Divido-me entre o ônibus do Bom Fim e noites de televisão.

 

Detesto cerrações, brumas e intermináveis nevoeiros,

Embora não saiba, que eu saiba, o que os diferencia

Sei apenas que o cinza das manhãs é feito de branco

E que Rosa, a fogosa, nem sempre se satisfazia.

 

Outro dia, tive uma ruptura de menisco

Bem sei que isso não se deu por virtude,

Mas me caiu assim na vida como um cisco,

Cobrando, repentinamente, uma atitude.

 

Um cisco afundando um barco à deriva.

Um toco me castigando sem esquiva,

A chuva lavando encostas antigas,

o menino acabando-se antes do coito.

 

Por ter nascido gauche ou travesso,

Coloquei o gelo no joelho direito,

Enquanto o esquerdo virava do avesso.

 

Falo sem medo desse meu enorme defeito

Porque não posso sozinho operar o mundo

Nem salvar a humanidade da soja transgênica.

 

Sei que na poesia teve um sem teogonia

E outro, mais triste, sem metafísica.

De minha parte, só me falta a arte

De recortar papéis e fabricar navios.

 

Procuro, para falar do mínimo, uma sintaxe

Que fosse o máximo para quem acaso me amasse,

Mas me pego falando sozinho diante da pedra

Que nem está no meu caminho, a pedra sem fé.

 

Pedra que é sem tempo e sem dimensão,

Assim como meus aviões envelhecem no hangar

Enquanto eu esfrego o piso do estaleiro.

 

Pedra que é como o corpo, sólida construção

Que vai se esfarelando todinha aos poucos

Até se fundir com a imaginação dos loucos.

 

Busco, defronte, o sorriso do dono da tabacaria.

Tabacaria não há mais, somente uma lavanderia.

Vivo nesta era, pós-fera, estéril, higiênica,

da pós-verdade, das fakenews, patogênica.

 

Nas madrugadas, faço sexo virtual

Ou sexo real, animal, surreal

Ou releio um um velho jornal

E já me consolo: qual é o mal?

 

Certa noite, exilado numa cervejaria,

Examinando o futuro e bebendo ao passado

Invoquei os santos, os filósofos e os bantos.

 

Tudo em vão.

 

Depois disso, dediquei-me à imitação.

Foi então que um espírito me falou:

Não é você quem copia. É a vida.

Tentei retrucar, ele já estava de saída.

 

Eu não queria contrariar o grande poeta,

Porém, tenho de confessar: já fui tudo:

 

Solene, grandioso, vagabundo, imundo,

Guerreiro, amado líder, gênio e bedel,

Amante latino, malandro, ladino, Nobel.

 

Apenas disso ninguém ficou sabendo.

 

No meu mundo, eu sou uma lenda

Que goteja ironia por uma fenda.

 

Feliz por fazer aniversário

junto com Romário!