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Verão

Especial

Duzentos anos de Baudelaire e outras histórias

Bicententário do grande poeta moderno

Charles Baudelaire nasceu em 9 de abril de 1821.

A sua vida foi um escândalo.

As suas Flores do mal renderam-lhe processo na justiça.

Eis uma tradução irreverente, livre, desregrada, debochada, indisciplinada, como foi a sua visão de mundo moderna, de um dos seus poemas mais famosos:

 

A Serpente que dança

Babo de ver, gata indolente,

No teu corpo de modelo,

Como uma lingerie insolente,

Tremeluzir o pêlo.
 

No teu cabelo profundo,

Acres perfumes,

Mar odorante e vagabundo,

Ondas azuis e negrumes,
 

Como um navio de esguelha

Ao vento da manhã,

Minha alma sonhadora aparelha

Para uma terra pagã.

 

Teus olhos que nada revelam

De doce nem de fatal,

São jóias frias que modelam

O ouro com o vil metal.
 

Quem te vê nesse andar que balança,

Linda e morta de tesão,

Imaginaria uma serpente que dança

Na ponta de um bastão.
 

Tonta de tanta beleza

Teu cabeça de infante

Ondeia com a moleza
De um jovem elefante.


E teu corpo se dobra e estira,

Como um suave barquinho

Que costeia a margem e atira

As suas vergas ao ninho.
 

Como vagas alimentadas pelas fontes

Dessas geleiras mordentes,

Se as águas da tua boca viram pontes

rente ao fio de teus dentes,


Creio beber da Boêmia um vinho,

Amargo e campeão,

Céu líquido que faz um caminho

De estrelas no meu coração!

*

Todas as vozes

 

      O pluralismo é a espinha dorsal da democracia e do jornalismo. Numa crônica de 23 de outubro de 1859 Machado de Assis faz uma defesa impressionante do valor da discussão: “Houve uma coisa que fez tremer as aristocracias, mais do que os movimentos populares, foi o jornal”. É de botar na parede. O ponto alto pode ser este: “A sentença de morte de todo o statu quo, de todos os falsos princípios dominantes. Desde que uma coisa é trazida à discussão, não tem legitimidade evidente, e nesse caso o choque da argumentação é uma probabilidade de queda”. Entrevistei neste ano que ainda começa o antropólogo Roberto DaMatta e os escritores Luiz Maurício Azevedo, Conceição Evaristo e José Falero.

      DaMatta é branco. Os outros três são negros. A partir de lugares de fala diferentes eles metem os dedos nas feridas da cultura brasileira. DaMatta: “A casa brasileira é tradicional. É hierárquica”. Mais: “Como eu digo nos meus livros, é uma sociedade relacional”. Ainda: “É uma sociedade que foi escravocrata, patriarcal e aristocrática”. Disso tudo resulta o recorrente “você sabe com quem está falando”. Uma sociedade moderna privilegia a impessoalidade. Uma cultura tradicional valoriza a relação que protege, ampara e favorece. Talvez por isso duvidemos tantos de conceitos como objetividade, neutralidade, isenção e imparcialidade. Somos a cultura da credencial.

      Conceição Evaristo, nascida e criada numa favela de Belo Horizonte, tornou-se escritora renomada, com diploma de doutorado e livros publicados no exterior. Mas foi barrada quando se candidatou à Academia Brasileira de Letras. Enfrentar o racismo ainda faz parte da sua vida: “Há muito que tenho oportunidade de viajar para seminários, para lá e para cá, com escritores e escritoras já conhecidos. Alguns desses escritores e escritoras, estando no mesmo espaço, no mesmo hotel, nunca me viram. Passaram a me cumprimentar depois que ganhei o prêmio Jabuti. Foi preciso ganhar o prêmio para que meus confrades acreditassem que estavam diante da escritora negra”. Assim mesmo.

      José Falero já fez muita coisa: trabalhou como gesseiro, auxiliar de pedreiro e ajudante em supermercado. Oriundo da periferia de Porto Alegre, da “quebrada” da Lomba do Pinheiro, surgiu como um foguete na literatura brasileira com “Vila Sapo” e “Os supridores”. O olhar dele é cortante: “Sendo bem franco contigo, tem uma preocupação entre a rapaziada do movimento negro, uma consciência de que as pessoas negras, mesmo negro de pele clara como eu, não vai ter perdão quando elas retearam em público. A sociedade parece menos tolerante com essas pessoas do que com as brancas. A pessoa negra é massacrada”. Ele fica ansioso, estressado com esse peso social que não cai.

      Ouvir essas vozes ajuda a compreender a cultura brasileira. Luiz Maurício Azevedo dá um bom toque no seu livro “Estética e raça: ensaios sobre a literatura negra”: “O racismo é um tipo de cegueira que inviabiliza o outro, fazendo do diferente um mero reflexo de nossa própria individualidade”. A pluralidade de vozes ensina a ouvir.