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O contágio por Shakespeare

Marcelo Ádams protagoniza o espetáculo que está em cartaz no Teatro Renacença até domingo | Foto: Alisson Phernandes / Divulgação / CP
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Dentre os livros mais estudados na história da humanidade, estão no topo da lista a Bíblia, o “Livro Vermelho de Mao Tsé-Tung”, o Alcorão e as dramaturgias escritas por William Shakespeare. Com propósitos distintos, esses quatro exemplos nos dizem algo sobre nossas preferências de leitura e as de nossos antepassados. Mas se os três primeiros cumprem suas funções preconizando alguns comportamentos e proibindo outros, as peças de Shakespeare, escritas na Inglaterra entre 1590 e 1612, passam longe de dogmatismos. É possível defender o contrário: um antidogmatismo representado pelo paradigmático rol de personagens, temas e situações dramáticas desenvolvidas pelo autor em suas quase quarenta peças.

Ao optar pelo verbo desenvolver para fazer referência ao processo de escrita do inglês, tenho em vista uma das características acessíveis à leitura de seus textos: sua prática de partir de fontes diversas, adaptando obras ou relatos seus contemporâneos ou muito mais antigos, de autores como Giovanni Boccaccio (em “Tudo está bem quando acaba bem”, “Cimbelino” e “Os dois cavalheiros de Verona”), Saxo Grammaticus (em “Hamlet”), Raphael Holinshed (em “Rei Lear” e “Macbeth”) e Plutarco (em “Antônio e Cleópatra”, “Coriolano”, “Júlio César” e “Timão de Atenas”). Mas que não reste a impressão equivocada de que por ter recorrido a fábulas emprestadas de outros, o genial dramaturgo foi menos criador. Longe disso! Foi no território dessa prática que Shakespeare produziu a peça mais famosa da dramaturgia universal, Hamlet, o ápice das “tragédias de vingança” elisabetanas. É inegável o vigor criativo encontrado nessas adaptações, pois criar a partir de materiais prévios não é apenas encaixar as peças de um quebra-cabeças, mas moldar as próprias peças, polindo, desbastando e as reformando; é artesania, não indústria. Se ainda resta dúvida sobre a potência criativa desse procedimento, recorro a uma técnica de composição ainda mais antiga do que a de Shakespeare, a contaminatio, encontrada nas dramaturgias de autores romanos antigos a partir do século III a.C.. Essa “contaminação” consistia na apropriação, por parte de dramaturgos como Plauto e Terêncio, de argumentos de duas ou mais peças gregas, que davam origem a uma nova peça. Esta, resultado da contaminação, tinha novas cenas e situações acrescidas, resultando em algo novo – mais ou menos o que chamamos de hipotexto e hipertexto.

“O Inverno do Nosso Descontentamento – Nosso Ricardo III” vem à luz na confluência dessas questões, com uma encenação que parte de um texto célebre, o Ricardo III de Shakespeare. Esse parece ser o motivo que levou o espetáculo a receber, em pouco mais de cinco meses decorridos da estreia, quatro críticas extremamente favoráveis publicadas nos maiores jornais diários de Porto Alegre, além da adesão entusiasmada do público, que vem inundando as redes sociais com depoimentos espontâneos sobre o arrebatamento causado pela peça. Entre os destaques, dois foram recorrentes: o caráter urgente e atualíssimo da contaminatio que propusemos entre Shakespeare (Ricardo III, mas também Hamlet, Macbeth e A tempestade) e o mundo contemporâneo, atravessado por incontáveis regimes de exceção mantidos por líderes autocráticos e ditadores, especialmente nos séculos XX e XXI. 

E também a violência das palavras e das imagens oferecidas pelo espetáculo, concretizadas pelos elogiados trabalhos de atuação de Marcelo Ádams e de Margarida Peixoto, da Cia. Teatro ao Quadrado, dirigidos por Luciano Alabarse. Não é o caso de afirmar que “a Inglaterra é aqui” quando usamos as atrocidades de Ricardo III como metáfora dos desmandos de governantes de nossa época, embora seja curioso que no mesmo ano de 1592 em que Shakespeare iniciou a escrita de “A tragédia de Ricardo III”, a coroa inglesa tenha fechado todos os teatros em função de um surto da mortífera peste. Na verdade, seria apropriado dizer “o Brasil também é lá”, e isso se torna evidente quando o espetáculo expõe as contaminações pelas quais temos passado: seja a terrível e interminável pandemia, seja o vírus da irreflexão e da corrosão democrática, que vem nos acossando sistematicamente.

* Doutor em Teatro, professor da Uergs, ator e dramaturgo

Marcelo Ádams *