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O talvez de Davi Koteck e Luiza Casanova

Autores de "Talvez nós dois tenhamos pensado na mesma pessoa" (7 Letras), Luiza Casanova e Davi Koteck | Foto: Vitor Necchi / Divulgação / CP
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Para escritores de ficção em prosa, e para leitores desse gênero, a poesia pode ser um susto - no melhor dos sentidos. Ela fornece pincéis, paleta de cores impossíveis, sensações difusas e uma tela em branco. A poesia faz um convite, às vezes oferecido com espanto, às vezes com gentileza, e não raro admitindo que essa coisa de estar vivo pode - e provavelmente vai - trazer certa medida de dor. Ela pergunta, meio que sem se dar conta de que o faz: você viu isso? É dessa interrogação inconsciente que nasce uma conversa interna, uma aproximação entre sentidos até então desconhecidos. Dois estranhos têm, por um instante-relâmpago, a súbita noção de que talvez os dois tenham pensado na mesma coisa. 

Tanto para quem escreve, meu caso, quanto para quem lê, o seu (o nosso), essa noção começa a se dissipar muito em breve, mas não vai embora de todo. Melhor dizer que passa a ser outra coisa, uma atmosfera que cresce dentro da nossa cabeça e por vezes se espalha até o peito. É daí que vem o que vou me permitir chamar de compreensão da incompreensão. Seria demais pedir para que você entenda o que quero dizer com isso assim, sem um aprofundamento maior dessa ideia. Mas acompanhe comigo o poema a seguir, primeiro sem que você saiba quem exatamente o escreveu:

“Eu vou olhar pra sua foto até esquecer/ que eu lembro de você/ Como quem repete uma palavra até ela deixar de fazer sentido/ Tente você mesmo/ Diga Marcelo/ Marcelo Marcelo Marcelo Marcelo/ Se no final do nome/ que emenda no próprio nome/ você ainda souber o que está falando/ Eu juro que vou até aí/ E repito seu nome na sua cara/ Mentira/ Eu vou olhar pra sua foto/ E aproximar com os dois polegares/ Até não aguentar mais/ Eu me odeio por ter feito isso agora/ Quando você virar um agrupamento de pixels/ Eu vou soltar/ E deixar você ser isso que era antes/ dos meus dedos se distanciarem/ na tela de um celular.”

O que este poema parece sugerir é a banalidade de sentir, evocada aqui por um movimento meio teatral e meio mecânico que aproxima e afasta na mesma medida. Assim que você pensa no gesto, pode entrever nele a vontade de esquecer que está contida, talvez a contragosto, no desejo de lembrar a que se refere o eu-lírico nos dois primeiros versos. Esse sentimento, por mais contraditório que pudesse soar se a vida e a literatura fossem apenas literais, é logo absorvido como inevitável. É essa faísca que chamei de compreensão da incompreensão - um susto. Você sabe que nunca vai saber. 

A literatura se serve da insuficiência da linguagem para apontar o que é difícil, quando não impossível, de nomear. Quem escreve aposta nesse diálogo silencioso entre o texto e o leitor, nunca fácil de ser posto em marcha. Imagine, então, se o autor do livro seja não um, mas sejam dois. Acertar o ritmo e executar esse acordo tácito é trabalho de gente grande. Um passo em falso e o resultado é desarmonioso e coloca em risco o que se pretende com o livro. Leia o poema a seguir, que aparece logo depois do primeiro que você leu:

“você me falou/ que estava indo embora/ pro outro canto do mundo/ à noite nos despedimos/ com os pés encaixados/ como uma tomada que pode dar choque/ por omissão ou excesso de energia/ na televisão assistimos uma cobra coral/ vomitar outra cobra coral/ no formato de um tratado diplomático/ gástrico e canibalístico/ e você tentava entender/ o que isso dizia sobre nós./ mais tarde repetimos uma mesma palavra/ (Marcelo)/ até que perdesse o sentido/ como se ao mesmo tempo deixasse de existir/ e ganhasse outro significado”

Você bate os olhos no nome Marcelo que aparece tanto aqui como lá e percebe que não é essa a resposta que o poema de Davi Koteck (este aqui) propõe ao de Luiza Casanova (aquele lá). A poesia que escrevem carrega uma atmosfera em que diálogo e ação se contrapõem. A compreensão da incompreensão se infiltra não pelas placas luminosas que anunciam “Entrada” ou “Saída”, e sim por alguma basculante esquecida aberta, projetando na parede pintada de preto um rasgo alaranjado ao amanhecer. É para ele que olhamos. É a imagem dos pés encaixados em despedida, como uma tomada que pode dar choque, que pergunta: você viu isso aqui? 

Essas imagens não só nos surpreendem, por não conseguirmos intuí-las antes, mas também nos atingem em cheio justamente porque ficamos rendidos, admitindo que talvez em algum canto ainda obscuro dentro de nós ela já existisse de alguma forma. É isso o que Casanova e Koteck fazem com destreza: riscam o fósforo. Ele pode não iluminar nada, mas permite ver quanta escuridão existe ao redor, como disse Faulkner. 

Não sou do tipo que acredita que escritores “devem” fazer isso ou aquilo. Ninguém deve coisa alguma, muito menos na arte. Prefiro acreditar que, para um artista, a combinação daquilo que acontece no nosso íntimo com o que vemos e ouvimos é o que confere força ao que produzimos. Portanto, não tem receita, nem segredo, nem conselho. Tem, digamos, uma disposição para aguçar os sentidos. E ler poesia pode assumir a forma (uma delas, claro) dessa disposição. O que importa é: o que acabei de dizer vale, sobretudo, para leitores. Deixem o fósforo iluminar.

Repare que a prosa (contos, romances, crônicas, esta resenha) se apoia numa certa linearidade e progressão narrativa, construindo uma lógica na qual o leitor saberá se situar e se mover. Amor é prosa, sexo é poesia, diz a música da Rita Lee, e posso apostar que você pegou a ideia. A poesia não se submete à forma - ela antes a inventa como quer. E é por isso que “Talvez nós dois tenhamos pensado na mesma pessoa” é um livro que merece ser saudado: ele inventa seu próprio mundo de três (o poeta, a poeta, o leitor), regido por dois autores cientes do que estão fazendo e daquilo que despertam em quem lê, entregando o estranhamento - a incompreensão - como chave para a leitura desse mundo. E é por isso que Koteck e Casanova são escritores admiráveis, no início de uma carreira promissora. Jamais esqueçam de riscar o fósforo.

* Escritor. Autor do livro "Jamais Serei Seu Filho e Você Sempre Será Meu Pai"

Talvez nós dois tenhamos pensado na mesma pessoa

Autor: Luiza Casanova e Davi Koteck. 
Páginas: 104
Formato: 14x21cm
Editora: 7 Letras
Ano: 2022

Thiago Souza de Souza *