"Camilo Mortágua”, escrito num mês, ligando história com literatura, faz, em síntese, uma releitura conflitiva de uma parte da história sulina no século XX, ou seja, mostra a descensão do herói, agora não do peão, como retratado na trilogia do gaúcho a pé de Ciro Martins – “Sem Rumo”, “Porteira Fechada” e “Estrada Nova” –, mas do patrão. Essa queda do antigo estancieiro encosta o corpo no capitalismo das décadas iniciais do século findo que, apossando-se de tudo, também do pampa rio-grandense, fez, além do mais, com que muitos estancieiros da época se vissem na contingência de abandonar o campo e suas lidas tradicionais, conhecidas e dominadas, que lhes davam vida, nome, dinheiro e ascensão, e rumassem, mesmo sem querer e a contragosto, para a cidade em busca de melhores situações de vida. Mas, uma vez chegados ali e estabelecidos, viram que as situações de vida eram bem diferentes das situações de vida campeira, tendo de engolir uma a uma as novas situações não conhecidas nem dominadas na cidade e para a cidade, encontrando nela os nãos, situações mil de morte, quedas e ruínas.
Josué Guimarães retrata em "Camilo Mortágua" uma face da realidade que o capitalismo semeou inclusive na vida campeira do Rio Grande do Sul. Ciro Martins em Escritores Gaúchos, 1981, página 93, escreve que Josué Guimarães apresenta no romance a realidade da “questão social deprimente do gaúcho (...), que já vinha de longe, mas que se agudizara nos anos 40, 50, 60, 70 (...) no vasto setor da campanha rio-grandense, pela deterioração progressiva e implacável das massas de extração rural, amontoados nas coroas de miséria, entregues à arbitrariedade do destino”. Esses amontoados de coroas de misérias – amplos, intensos, tensos e fatais – não se deram, portanto, apenas nos campos, mas igualmente ou pior ainda nas cidades.
Complementa e reforça esse inventário de impacto urbano Luiz Marobin em A Literatura no Rio Grande do Sul – Aspectos Temáticos e Estéticos, 1985, páginas 183-4, ao registrar que “a fuga da estância para a indústria encontra as personagens despreparadas. Resultado: todos se atiram em direção da miséria e do aniquilamento total, de que Camilo Mortágua é o modelo, o arquétipo. A família inteira, do famoso Camilo Mortágua, se degrada e desaparece no horizonte das coxilhas e da cidade”. Essa degradação e desaparecimento se dão com Leonor, esposa de Camilo; Virgílio, João e Patrícia, filhos; Quirino, Esmeralda, Vinícius e Jeziel, irmãos; Mocinha, amante de Camilo, e com muitos outros. Camilo, personagem-símbolo condutor da história do romance, diante dos impactos das mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais introduzidas, forçadas e reforçadas pelo modelo capitalista, sempre desigual e excludente, não possuindo forças para reverter o horizonte das situações gerais que desestruturam e trituram, também sucumbe. Ele e todos os seus familiares tiveram de beber na cidade as novas e cruéis realidades que antes na estância nem adivinhadas tinham.
O tempo narrativo restrito de cinco dias, começado no dia primeiro e terminado na noite de cinco de abril de 1964, registra os acontecimentos desenrolados ora no campo alegretense, ora na cidade porto-alegrense. Camilo Mortágua, personagem central do romance, herói cheio de vícios e não de virtudes, sem identidade e sem caráter, ao menos na cidade, simboliza, além da decadência das estâncias da fronteira, da Campanha, também a decadência das pequenas oligarquias e burguesias nascentes enraizadas no imperialismo progressivo do capitalismo que passou a dominar, como que a ferro e fogo, a história e a geografia rio-grandenses já na década de 20. Enfim, “Camilo Mortágua”, em termos de teoria literária, poderia ser entendido como metonímia dos Camilos que, tais qual ele, imergiram nas mortas águas, campeiras e urbanas, metáfora do sobrenome, e delas não mais, nem a um só e novo suspiro, emergiram.
Assim, para corroborar com o panorama histórico-literário de “Camilo Mortágua” aqui sucinta e parcialmente posto e exposto, nada melhor na conclusão que as palavras do próprio Josué Guimarães ditas no depoimento aos estudantes da Unisinos em 1972, transcritas aqui da página 184 de A Literatura no Rio Grande do Sul – Aspectos Temáticos e Estéticos, de Luiz Marobin:
“As minhas raízes, essas não posso negar, são da fronteira onde me criei quase bilíngue, ouvindo histórias de caudilhos, revoluções, tropelias e degolações. Muita coisa vi com os próprios olhos. Guardo extraordinária e quase mediúnica memória de minha vivência até os dez anos de idade. Imaginem: acompanhei o enterro de Honório Lemes do saguão da Prefeitura de Rosário do Sul até o sepultamento, com banda tocando a marcha fúnebre (.......). Minha temática é a miséria, o caldeamento de raças, a insegurança política e social, o caudilhismo, a ignorância, a doença e a passividade diante do destino.”
* Professor na URI de Santo Ângelo, membro da Academia Santo-Angelense de Letras
Artur Hamerski *