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Verão

Especial

A doce luta de quem quer empreender

Afroempreendedorismo cresce no país, sobretudo entre as mulheres, mas financiamento ainda se impõe como desafio

Silvia Rosane Domingues, moradora de Alvorada, deixou para trás a realidade do trabalho doméstico em casa de família para empreender no próprio sonho | Foto: Ricardo Giusti

Foi-se o tempo em que só cabiam à população negra cargos de funcionários em uma empresa ou instituição, em papéis secundários ou subalternos. O movimento atuante de empoderamento da etnia em todo o planeta, potencializado na última década, contribuiu para que, cada vez mais, negros assumam o protagonismo e se tornem empreendedores. O afroempreendedorismo, ligado majoritariamente ao universo feminino, cresce no Brasil.

Segundo dados do estudo “Empreendedorismo negro no Brasil”, realizado pela organização PretaHub, a população de pele negra no mundo dos negócios movimenta mais de R$ 1,7 trilhão de reais por ano – mais da metade, 52%, são mulheres. A afirmação do orgulho da negritude aparece na pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizada entre os anos de 2015 e 2018, em que o único que cresceu foi o de pessoas que se declararam pretas ou pardas. Neste sentido, o afroempreendedorismo aparece como ferramenta para dar vazão às tendências de mercado deste grupo, tanto para clientes, quanto empresários. Neste último caso, conforme a pesquisa, a maioria dos negros que empreendem tem até 40 anos (34,7% entre 30 e 39 anos e 33,9% entre 18 e 29).

A pesquisa divide os perfis de empreendedores negros em três: engajado, quando há desejo de empreender, muitas vezes somado à vontade de exercer atividade autoafirmativa, voltada para o público afro; por necessidade, quando há dificuldade de inserção no mercado de trabalho; e vocação, familiaridade com a atividade e desejo de ser autônomo. Sudeste (40%) e Nordeste (31%) concentram maior parte dos empreendedores negros. A região Sul tem apenas 6%. É nesta restrita faixa que se encontra a confeiteira Silvia Rosane Domingues, 49 anos, que prepara sozinha as mais variadas iguarias em sua casa, em Alvorada, e as entrega com o mesmo sorriso largo que a caracteriza. Um talento que descobriu cedo. “Sempre morei em casa de família, onde minha mãe trabalhava como empregada doméstica. A dona da casa, que eu chamava de ‘Vó’ fazia muitos doces e eu ali aprendia com elas, além de comer a ‘rapinha’ nas panelas”, lembra.

Silvia desconhecia as raízes negras até os 13 anos, quando foi morar com sua mãe em um lugar só delas. Ao descobrir o mundo exterior, se viu maravilhada com a beleza da cor preta que encontrava nas ruas. “Quando saí da casa na avenida Carlos Gomes e fui para o Centro de Porto Alegre, aí vi outro mundo. A referência que eu tinha eram os cabelos lisos e compridos da neta da ‘Vó’, mas adorei o que passei a ver: me encontrei”, revela. Até então, a adolescente que provava um a cada dois docinhos que criava, ouvia que o futuro lhe reservaria apenas o emprego de babá. “Se as crianças da casa de família brigavam, alguém dizia ‘só podem ter aprendido com a negrinha!”, lembra.

Pois Silvia quis ir longe, estudou e chegou à universidade, se formando secretária-executiva bilíngue na PUCRS. Foi nessa época que aliou duas paixões. “Trabalhava em uma faculdade e levava ‘negas malucas’ para vender na cantina, onde gostaram muito. Fiquei conhecida como a ‘Senhora dos Doces’. Comecei a diversificando os produtos. Quando fui demitida, em 2019, decidi trabalhar só com isso”, conta. 

Com a pandemia, os eventos que encomendavam seus bolos artísticos escassearam, mas a confeiteira não se limitou a reclamar. Pelo contrário. “Criei os quindins de café, em setembro de 2020, e continuei com as entregas e trabalhando em casa”. Como empreendedora, ela não sentiu discriminação por ser negra, mas sabe que muitas pessoas da sua etnia têm dificuldades para começar. “Não pode ter medo e se deixar intimidar. Não acreditar que não pode chegar lá. Levanta a cabeça e vai à luta”, ensina a confeiteira que sonha, um dia, em ensinar o que sabe para outras mulheres que também desejam seguir sua doce trajetória. 

Resiliência

A perda de um cachorro em um atropelamento levou Samara Silva, 30 anos, e o noivo Levi a criarem uma pet shop especializada em proteção dos animais. O vira-lata Mandela inspirou o nome e a marca da loja, Madiba, um dos apelidos do ex-presidente da África do Sul, vencedor de um prêmio Nobel da Paz. O casal, ambos negros, aposta em uma fábrica de coleiras e outros acessórios para cães e gatos. “Estamos no início da nossa história, esperamos crescer no ramo”, confessa. Samara e Levi hoje têm outro companheiro de quatro patas, o Martin. “É por causa do Martin Luther King (líder do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos). Somos muito ligados à causa.” Samara enxerga oportunidade no mercado para a população negra. “Somos muito fortes, criativos e resilientes. A gente vai se adaptando durante a vida, desde situações que ocorrem na escola até quando chegamos a ter o nosso negócio. Mas podemos chegar lá, acreditando que é possível”, diz ela, hoje formada em Gestão Estratégica de Negócios.

Caminho às vezes é a única opção

Autor da dissertação “Mercado e equidade: o empreendedorismo negro no Brasil”, o mestre em Direito, Lucas Sena Silva, teve um exemplo bem-sucedido em casa. “Venho de uma família de mulheres negras fortes, aguerridas, que nunca tiveram apoio governamental para tocar os negócios, mas sempre empreenderam”, lembra. A experiência pessoal o levou a estudar o tema. “Pude perceber que, para efetivar a igualdade de oportunidades, é necessário pensar esse conceito na prática”, explica, sugerindo uma recapitulação do histórico do negro no país, desde a escravidão, para entender o contexto atual. “Mesmo após a abolição da escravatura, a mão de obra negra era desvalorizada em face do trabalho imigrante europeu branco”, explica. “Isto resultou em um processo de invisibilidade e marginação do trabalho industrial negro”, contextualiza Sena. Segundo ele, a consequência do que ele chama de “apagamento histórico”, culminou em falta de oportunidades no mundo do trabalho. “Restou o caminho da informalidade e do subemprego. A população não era vista como empreendedora, mas era obrigada a se tornar empreendedora por necessidade”, sustenta.

Instalada frente parlamentar

Foi instalada no início deste mês, na Câmara Municipal de Porto Alegre, a Frente Parlamentar do Afroempreendedorismo. A iniciativa, de autoria da vereadora Laura Sito, busca criar um ambiente favorável para surgimento de novos empreendedores negros. O coordenador da Reafro/RS, Cleiton Chiarel, avalia que a Frente representa um “pontapé inicial para a construção de uma rede com foco no desenvolvimento não apenas da economia, mas, também, das pessoas.” 

Correio do Povo