Busca por água gera filas, longas esperas e até conflitos em Porto Alegre

Busca por água gera filas, longas esperas e até conflitos em Porto Alegre

Moradores redescobrem antiga bica na Auxiliadora; mercados e distribuidores têm filas e listas de espera

Matheus Chaparini

Moradores de diversas localidades fazem junto a antiga bica do bairro Auxiliadora

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Em meio a uma catástrofe causada pela água, a cidade que nasceu às margens do Guaíba vive um paradoxo. É tanta água, mas tanta água, que falta água. Das seis estações de tratamento, a cidade chegou a ser atendida por apenas uma, a Belém Novo, que atende o Sul e o Extremo Sul. O Dmae conseguiu restaurar funcionamento para as estações Menino Deus, Tristeza e São João e, ao longo da quarta-feira, quatro estações abasteciam os porto-alegrenses.

No bairro Auxiliadora, uma antiga bica pública foi redescoberta pela população. Desde o fim de semana, a fonte localizada na rua Carlos Trein Filho tem fila de pessoas de diversos bairros para encher baldes e galões. Uma placa alerta no local informa que o líquido é impróprio para consumo. Mas as pessoas buscam para utilizar na limpeza.

Um morador antigo, que vive há mais de 40 anos no bairro, conta que antigamente eram ao menos 4 bicas no entorno, mas as demais foram fechadas ao longo dos anos.

As filas são formadas por moradores do bairro, que é abastecido pela ETA Moinhos, e de outras localidades, como Bom Fim e Petrópolis, bairro dividido entre as estações Moinhos de Vento e Menino Deus.

Bica pública na rua Carlos Trein Filho, bairro Auxiliadora | Foto: Camila Cunha

O empresário Jonas Tauber, 41 anos, é um dos moradores do Auxiliadora que integra as filas. No domingo, ele conta que foi até o local durante a madrugada e esperou da 1h30 até as 3h da madrugada para abastecer. Ele relata que os piores dias foram segunda e terça-feira, quando Porto Alegre chegou a ficar com apenas uma ETA funcionando.

“Para quem mora aqui perto o impacto é menor, porque a gente tem uma bica do lado de casa. Vem gente de todos os bairros. No domingo de madrugada, tinha um pessoal de Canoas pegando água aqui”, relata.

O massoterapeuta Ernando Fernandes, 32 anos, veio de Canoas. Ele conta que mora no bairro Niterói e está em processo de mudança para um local próximo à bica. Com aviso de evacuação em Canoas, ele antecipou a mudança, mas ao chegar em porto alegre, não havia água para o banho. “Mandei mensagens para colegas de trabalho que moram perto, porque eu fui em Rissul, em Zaffari, distribuidora, perguntei para os porteiros, para os Bombeiros. Ninguém sabia dizer. Uma senhora disse que estava passando paninho para se limpar. Aí um colega mandou o endereço da bica.”

Nos supermercados, prateleiras vazias. A cada carregamento, uma fila se forma e o racionamento se impõe, para garantir que mais pessoas tenham acesso a, pelo menos um pouco, do líquido para beber. Na tarde dessa quarta-feira, o Zaffari da Anita Garibaldi não tinha previsão de reabastecimento. Na loja da avenida Ipiranga, a venda era limitada a um fardo de garrafas de meio litro por pessoa e formava filas.

Briga e lista de espera

Em uma distribuidora localizada na avenida Plínio Brasil Milano, um cenário nunca antes visto pela proprietária, Maria Solange Conceição, que atua no ramo há 21 anos: a loja está vazia. A empresa conta com seis funcionários na distribuição, com dois carros e 4 bicicletas. Foram dispensados. Apenas dois ciclistas por dia trabalham, quando tem água. O preço segue o mesmo: $14 o galão de 20 litros.

Solange relata que não consegue fornecimento, pois, na fonte, no bairro Belém Velho, caminhões chegam a esperar 14 horas pelo abastecimento. Outro problema é a escassez de cascos.

Distribuidoras de água sem reposição de estoques | Foto: Camila Cunha

Solange criou uma lista de espera, considerando 109 galões por dia. A fila vai até a sexta-feira da semana que vem, com cerca de mil galões encomendados. No entanto, ela já sabe que não será possível cumprir o cronograma, em função da demora para receber o produto. “Na segunda, eu recebi 68 bombonas, mas tinha uma fila de mais de 200 pessoas. Não deu conta. Eu entendo todo o transtorno que está, mas as pessoas não estão com essa paciência. Eu estou com a loja aberta para dar satisfação para cliente, avisar que só deve vir amanhã.”

Marido de Solange, Matheus Rodrigues conta que a loja passou a baixar as grades em função dos ânimos exaltados. Ele chegou a separar uma briga entre dois clientes e relata ainda furto de galões de água, enquanto os produtos eram descarregados do caminhão. “Eram dois senhores, eu tive que apaziguar. Tentei organizar uma fila indiana, mas daqui a pouco entrou gente na loja, teve gente que roubou água. Agora vamos trabalhar com a grade fechada”, afirma.

Ao longo da tarde, a reportagem localizou uma farmácia, no bairro Santana, vendendo fardos de água mineral. O produto havia acabado de chegar. Rapidamente havia apenas garrafas de meio litro, custando R$ 4,99 cada.

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Fila desde a fonte

Na Fonte de Belém, localizada no bairro Belém Velho, motoristas esperam quase 10 vezes o tempo que seria habitual para carregar caminhões com galões de 20 litros. A fonte produz cerca de seis mil galões por dia e está com horário estendido. O administrador, Gabriel Joaquim dos Santos mostra uma planilha, com uma lista de espera de 40 caminhões, que deve ser superar somente na sexta-feira. “Quem sai carregado já pede para entrar na fila de novo”, afirma. E o telefone não pára.

A empresa criou um sistema de drive-thru solidário. Quem chega até o local, na avenida Costa Gama, pode abastecer até 40 litros de água mineral de graça. “A gente atende EPTC, Segurança Pública, área da saúde, abrigos, não tem quem venha e a gente não dê água. E não aumentamos os preços.”

As outras fontes que envasam água de 20 litros ficam em Caxias do Sul, Campo Bom e Presidente Lucena, mas há dificuldade de acesso a estes locais. “Eu tenho caminhão parado, que eu poderia estar buscando, mas não tem como chegar.”

Perigo nas estradas

Um cliente da fonte, que faz transporte com seu caminhão, conta que foi a Santa Catarina nessa terça-feira buscar mil galões vazios, item que está escasso. Na volta, ele relata que ficou preso em um engarrafamento na ERS 118 e foi abordado por um grupo de cerca de 50 pessoas, que queriam comprar água. Ele informou que não poderia vender, pois a carga já estava destinada. A resposta veio em tom ameaçador. “E se a gente saquear teu caminhão?”

O homem conta que teve de ceder dois galões que havia guardado para o consumo da família. Após o episódio, passou a temer saques e assaltos no trabalho.

Fonte de Belém, que abastece distribuidoras de água | Foto: Camila Cunha Bica pública na rua Carlos Trein Filho, bairro Auxiliadora | Foto: Camila Cunha Fonte de Belém, que abastece distribuidoras de água | Foto: Camila Cunha Fonte de Belém, que abastece distribuidoras de água | Foto: Camila Cunha Distribuidoras de água sem reposição de estoques | Foto: Camila Cunha Prateleiras de água estão vazias nos mercados | Foto: Camila Cunha

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895