A multiplicidade de uma escritora

A multiplicidade de uma escritora

Em “Mundos de uma noite só”, primeiro romance de Renata Belmonte, história é decifrada pelo interior de suas personagens

Henrique Massaro

Renata Belmonte pensa cada vírgula de sua prosa, sem esquecer de deixar abertas valiosas lacunas para o leitor

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Encontro-me, neste momento, diante de uma tarefa que é, ao mesmo tempo, desafiadora e prazerosa. Preciso escrever sobre “Mundos de uma noite só”, primeiro romance de Renata Belmonte, sem entregar detalhes de um livro que é recheado de peças chave que cada leitor deve descobrir e encaixar por sua conta e risco. Porque se a leitura é uma experiência íntima – e sempre é –, a de “Mundos” pede uma entrega real e sincera de cada um. Renata Belmonte pertence à categoria de escritoras que pensam em cada vírgula de sua prosa, sem, com isso, esquecer de deixar abertas valiosas lacunas para o leitor preencher com sua própria experiência.

Entendo que uma sinopse nada mais é do que um mecanismo para fisgar possíveis interessados em determinada obra e que jamais apreende o que seu autor de fato está oferecendo. Tudo o que precisa ser dito sobre um livro está entre a primeira letra maiúscula e o último ponto final. Mas, valendo-me deste artifício mercadológico, direi, já falhando logo de cara, que “Mundos de uma noite só” conta a história de uma mulher que mergulha em direção ao passado de sua família. O ponto de partida é a descoberta de um livro entre os pertences de sua mãe, que faz com que dúvidas e angústias que sempre estiveram no ar sejam revisitadas. 

Trata-se de um romance de formação, mas que nos é oferecido de forma fragmentada, num mosaico de textos que encaixam a visão da personagem principal, seu dilema central e suas dores periféricas, em diferentes momentos da vida. Ela divide com o leitor suas dúvidas e incertezas, do processo de descoberta do próprio corpo à construção de sua identidade, este processo que é sempre único, mas que, ao mesmo tempo, encontra pontos em comum, sensíveis e desconfortáveis às singularidades de todos nós.

Com uma verdadeira interiorização narrativa que, arrisco dizer, tornou-se rara na literatura contemporânea, “Mundos” tem chamado a atenção e recebido diversas críticas positivas de psicanalistas. “Me interesso por psicanálise, mas, como ficcionista, não faço esse tipo de trabalho esquemático, deixo que corra fluidamente. Só sabia que queria contar uma história em que os leitores conhecessem os personagens por dentro e não por fora”, explica a autora.

“Na casa onde cresci, não havia fotografias com homens”, começa Renata Belmonte, em uma primeira página que nos apresenta a premissa central do romance – “viverei o suficiente para conhecer meu pai?” – assim como tantos outros conflitos que serão levantados ao longo do livro, sempre deixando no ar as perguntas cujas respostas só serão respondidas no decorrer da leitura. No início do livro, a prosa ganha força e parece levantar questões que são calculadamente interrompidas a cada virada de página. Na narrativa em primeira pessoa, entrecortada por tempos distintos, a protagonista nos apresenta a força das outras duas figuras femininas que a fazem concluir, mais à frente: “sou sempre meio, jamais fim”.

É ainda nas páginas iniciais que uma dessas personagens, Lágrima, diz a frase que entenderemos como importante, mas só mais tarde compreenderemos por que é central: “Não se nasce mulher, torna-se”. A citação direta de Simone de Beauvoir é apenas uma das tantas referências literárias e cinematográficas que a autora insere no romance, muitas delas tão deliciosamente encaixadas que passam despercebidas numa primeira leitura. O que é o feminino, afinal, talvez seja a grande pergunta que precede a própria premissa que nos é apresentada logo de cara.

Nenhum detalhe estético das personagens é dado de mão beijada. O ideal de beleza, sempre como um padrão imposto às mulheres, jamais vem acompanhado de um texto descritivo. Cabe a cada leitor essa construção imagética, que não é a única das tentativas da autora de tornar o processo de leitura menos passivo. Se, ao atribuir uma aparência a determinadas personagens, o fazemos sempre carregados de nossas concepções prévias, também conseguimos conceber suas personalidades livres de preconceitos graças às reviravoltas proporcionadas pela escrita de Renata Belmonte.

Percebi, logo de cara, a preocupação da escritora com a linguagem – “Queria que você pudesse abrir uma página do “Mundos”, ler um pedaço e achar bonito”, conta Renata – e também com a estrutura. O estranhamento inicial, provocado propositalmente pela narrativa fragmentada e enigmática, pode dar a falsa ideia de que a história ganhará menos atenção. Mas a sensação é descartada no momento certo. Com a chegada de “Uma valsa para o esquecimento”, que é o livro dentro do livro, somos capturados por uma prosa vertiginosa. É quando a escritora nos mostra sua multiplicidade. Agora sob o ponto de vista de outra das personagens do romance, nos é concedido acesso às raízes familiares de uma mulher que, até então, tinha o passado negado, e mergulhamos numa cidade que não tem nome, mas que pode ser muitas do Brasil.

O contexto é o de meados do século 20, num lugar onde sobrenomes abrem e fecham portas. Traições conjugais e de ideais se misturam, personificadas em um homem que é a expressão do coronelismo. Aparentemente identificado com certo progressismo na juventude, ele não tarda a se aliar ao regime ditatorial que se instala no país para se perpetuar no poder. Os 13 capítulos de “Uma valsa para o esquecimento” entrelaçam-se com a narrativa principal de “Mundos de uma noite só”. O acesso ao interior da casa da família e de cada uma daquelas pessoas se soma ao processo introspectivo da protagonista que acompanhamos desde o início da história e que se torna cada vez menos estranha a nós. Quantas gerações um ciclo de traição, mentiras e preconceito pode impactar?

A história de “Mundos” é essa. Ao mesmo tempo, é muitas outras. Algo que também pode ser dito sobre alguns dos temas presentes no livro. A autora escreve sobre o feminino, sobre os muitos dilemas com os quais uma mulher convive desde o momento de seu nascimento, mas invariavelmente também dialoga com o masculino e suas tantas questões. Renata Belmonte encontra o tom certo para levantar os assuntos necessários e tem a coragem de não fincar bandeiras definitivas no terreno que a literatura resguarda como o da liberdade. Talvez seja o único que ainda tenhamos, afinal. “Tudo o que escrevo é pessoal”, confidencia a autora. “Em todos os personagens que eu escrevo, estou colocada neles, os fatos podem não ser autobiográficos, mas as emoções são.”

Como bem define Luiz Ruffato na orelha do livro, Renata “não faz concessões”. O fato de ser uma mulher feminista entra como soma em uma ficção que não cabe em panfletos e não a impede de conceber com sinceridade e profundidade personagens masculinos, por mais misóginos que venham a ser. “Entendo a literatura como uma força muito ampla, não me agrada dizer mais do mesmo, quero muito mais construir alteridades e poder, eventualmente, a partir dessa construção, entender o outro e até construir uma fonte de diálogo com aquele que tem uma diferença muito gritante comigo. A boa literatura tem que se sustentar em qualquer tempo.”

O tempo, aliás, é objeto de todo e qualquer romance. Há o tempo da narrativa e o da história – em “Mundos de uma noite só”, ambos são fragmentados, entrecortados por épocas e pela visão de personagens distintas –, mas há também o tempo de cada escritor, de cada livro. “Mundos”, que faz um recorte da Ditadura Militar e de valores antidemocráticos que imperavam na época, teve sua primeira versão escrita entre 2012 e 2013, época em que os pilares da democracia brasileira pareciam mais consolidados, questionados somente por uma minoria pouco barulhenta.

Renata Belmonte, que publicava contos desde 2003, viveu uma verdadeira empreitada para publicar o primeiro romance. Foram dois contratos rompidos: o primeiro com uma editora que deixou o mercado brasileiro e o segundo, com uma casa editorial que parou de trabalhar com ficção. O tempo, imponderável, passou. Renata, que é também advogada, fez doutorado e teve duas filhas durante este período. Mudou, mas não desistiu do livro, que foi publicado pela editora Faria e Silva em 2020, num Brasil que também se modificou, tornando-se muito mais próximo do país do romance escrito oito anos antes. “Fala-se muito que os escritores são antenas do tempo, mas o “Mundos” captou um zeitgeist antes, sem eu saber. Achava que o tempo dele era lá atrás, mas é agora.”

Termino de ler “Mundos de uma noite só” às vésperas de mais um inverno, o segundo em pandemia. No mesmo dia, faço algo que não tenho costume: recomeço a leitura. Avanço dezenas de páginas para ter certeza de que Renata não esqueceu de deixar nenhuma peça do quebra-cabeça que acredito ter acabado de montar. Está tudo lá, escancarado, mas tão bem inserido na trama que parece escondido. Passo meu último filtro pelo livro e encontro pequenos pontos em aberto. Não interferem na solução do enigma do romance, mas, ainda assim, não consigo preenchê-los com respostas. Essas brechas motivam boa parte das perguntas que faço em minha conversa de mais de duas horas com a escritora.

Já é inverno quando acabo de escrever essas linhas. Percebo que continuo sendo acompanhado pelas personagens e pelas lacunas deixadas pela autora, sejam as menores, que insistem em ficar em aberto, ou até mesmo as maiores, que, embora tenha conseguido fechar, continuam em minhas reflexões. Encerro, aqui, porque preciso, mas a sensação, exatamente como a história de “Mundos de uma noite só”, é de ainda não ter terminado.

Ficha técnica

Mundos de uma noite só

Autora: Renata Belmonte

Editora: Faria e Silva

Páginas: 200


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