Belchior, um ídolo à deriva

Belchior, um ídolo à deriva

Juremir Machado da Silva escreve sobre o "melhor compositor brasileiro de todos os tempos"

Juremir Machado da Silva

Belchior rompeu com a sociedade mercadológica espetacular e derivou até se apagar

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Para o francês Guy Debord, cuja obra-prima, ‘‘A Sociedade do Espetáculo’’, completa 50 anos em novembro, ‘‘deriva’’ era um conceito sociológico. Colocar-se à deriva deveria significar romper com o sistema da mercadoria e tentar transformar a própria vida numa obra de arte. No pouco tempo que tive para conversar com Belchior quando ele me procurou, em 2013, em Porto Alegre, senti diante de mim um artista à deriva, um retirante em busca de si e do nada, do sublime e do cotidiano na sua crueza carnal. Tenho convicção de que Belchior rompeu com a sociedade mercadológica espetacular e derivou até se apagar.

Esta é a história de um ídolo, um gênio, que largou tudo e saiu em busca de um fã que o adotasse. Encontrou muitos que o levaram para casa por algum tempo: um mês, 40 dias, três meses, quatro anos. Tentou comigo. Decepcionou-se. Sou fã. Mas não me via levando para morar comigo um casal com seus problemas, ainda mais que Edna, última mulher de Belchior, me pareceu desde o primeiro minuto uma pessoa complicada. Belchior encontrou o fã capaz de adotá-lo em Santa Cruz na pessoa do radialista e escritor maranhense Dogival Duarte. Quem o recebeu por algum tempo se orgulha do que fez. Passado um período de deslumbramento a realidade se impunha: problemas de relacionamento com Edna ou como continuar bancando indeterminadamente o custo do casal.

Dogival perseverou, abrigou Belchior na sua casa, depois na de amigos como o professor de filosofia Ubiratan Trindade, e, por fim, na casa emprestada onde o cantor morreu. Houve altruísmo e curiosidade de parte de muitos que acolheram Belchior: quem não quer ter em casa uma celebridade, um gênio musical, um ídolo? Alguns talvez tenham esperado que em algum momento Belchior retribuísse cantando. Não creio que isso tenha acontecido. Ubiratan conta que, em Murta, no interior da cidade de Sobradinho, onde instalou a dupla, Belchior teria composto e cantado para surpresa do caseiro, que o tinha por professor de filosofia. Belchior, contudo, parece ter guardado uma porção irredutível. Não quis ser pássaro de gaiola. Salvo revelação a vir.

Se cada fã queria o ídolo só para si por algum tempo, Edna parece ter radicalizado esse ideal possessivo: retirava o companheiro de cena e o mantinha escondido. Propus a Belchior que desse uma entrevista para o nosso Esfera Púbica, da “Rádio Guaíba”. Ele estava inclinado a conceder. Edna não deixou. Ela o dominava estranhamente. Salvo se fosse um escudo à disposição dele. Creio que nunca decifraremos o que se quebrou dentro de Belchior. Ele podia voltar a cantar e a ganhar dinheiro, mas não queria. Era um homem em fuga. Depois que nos deixou, andou à deriva por Porto Alegre até ser resgatado por outro fã. E assim foi derivando. Eu sabia que ele estava em Santa Cruz, mas não verificava mais as informações. Para quê? Para desalojá-lo? Para que se assustasse como um rio, um bicho, um bando de pardais? Ele só queria ficar aninhado deixando o tempo passar.

Já escrevi que Belchior foi o melhor compositor brasileiro de todos os tempos. Por quê? Ele traduziu uma geração inteira, a minha, em poucos versos magistrais de uma beleza simples e melancólica: ‘‘Eu sou apenas um rapaz/Latino-Americano/Sem dinheiro no banco/Sem parentes importantes/E vindo do Interior’’. Biografia de geração completada pelo desencanto: ‘‘Minha dor é perceber/Que apesar de termos/Feito tudo, tudo, tudo/Tudo o que fizemos/Ainda somos os mesmos/E vivemos/Ainda somos os mesmos/E vivemos/Como os nossos pais’’.

Por mais triste que seja, Belchior terminou sua vida em total sintonia com suas canções: à deriva. Sem fazer concessões. Sem cantar. Humilhou-se pedindo ajuda, recebendo favores, vagando, deixando contas para trás, entregando-se com um animal em exibição para poucos. Como um Rimbaud, Debord ou um Jean Baudrillard, que defendia a existência de algo irredutível ao valor de troca, não deu mais show. Negou aos outros o que mais sabia fazer e podia dar: suas interpretações. Permaneceu, nesse sentido, autônomo e inacessível até o fim. Guy Debord atacou a separação gerada pela mercadoria: separação entre o trabalhador e o produto do seu trabalho, separação entre o artista e a sua obra pelo valor de troca, separação entre palco e plateia. Belchior fez do final da sua vida uma crítica radical à separação. Entregou tudo, entregou-se a todos, pôs-se à deriva, mas não deu show. Edna teria dito a uma sobrinha de Belchior que ele fez uma apresentação na noite anterior à da sua morte. Prefiro não crer.

Como toda hipótese, esta pode ser desmentida pelos fatos, por um vídeo, por um áudio, por um depoimento, enfim. Ficarei com a tese contra os fatos. As melhores ideias nem sempre correspondem à realidade. Belchior traduziu uma geração que perdeu. Não poderia terminar como vencedor. A utopia não veio. Belchior retirou-se depois de responder com muita antecipação à própria pergunta: ‘‘Se você vier me perguntar por onde andei/No tempo em que você sonhava/De olhos abertos, lhe direi:/Amigo, eu me desesperava’’. Um desespero sereno.

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