Diretor russo lança filme no Fantaspoa em Porto Alegre
Kirill Sokolov exibiu "Rasgue e Jogue Fora" no Cinema Capitólio na sexta,29 de abril. Filme usa a violência familiar como tema e diz que enredo ajuda a esclarecer conflito entre Rússia e Ucrânia
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Escrito há três anos, gravado há dois anos e lançado na terceira semana de abril deste ano, o filme "Rasgue e Jogue Fora", do diretor russo Kirill Sokolov, estreou no Brasil na 18ª edição do Fantaspoa 2022,maior festival de cinema dedicado exclusivamente a filmes de gênero fantástico (fantasia, ficção-científica, horror e thriller) da América Latina. O Festival, que ocorre desde 2005 em Porto Alegre, reuniu 188 títulos entre curtas e longas-metragens, a grande maioria inédita no Brasil, que foram exibidos de 14 de abril e 1º de maio, nas salas do Cine Farol Santander, Cine Grand Café, Cinemateca Capitólio, Instituto Ling e Sala Eduardo Hirtz (Cinemateca Paulo Amorim), em Porto Alegre. O longa foi exibido na última sexta-feira, na Cinemateca Capitólio, no Centro da Capital. O enredo usa como um dos elementos centrais a violência como instrumento de mediação das relações humanas. O contexto da trama dialoga com o momento atual, em que a Rússia é uma das protagonistas de um roteiro de horror, que pode levar o mundo para o cenário da 3ª Guerra Mundial.
O lançamento do filme coincidiu quando Rússia e a antagonista Ucrânia vivem um conflito de interesses. Em fevereiro, o presidente russo Vladimir Putin enviou as primeiras tropas militares para a Ucrânia. De lá para cá, o impasse se ampliou e já causou em torno de 3 mil mortes entre civis e militares dos dois lados. A retirada da força russa está condicionada a uma série de exigências de cunho político e econômico impostas sobre a Ucrânia, moeda de troca que o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky não aceita porque acredita que acatando essas deliberações o país perderá a sua autonomia. Neste imbróglio de repercussão mundial, que dividiu apoiadores internacionais entre as duas nações, o filme acabou sendo cancelado por países, como a Escócia e Novo México. Por este motivo, a primeira menção do diretor antes do filme começar na sala da Cinemateca Capitólio foi um agradecimento . “Obrigado por não terem cancelado o meu filme”, disse.
O roteiro de "Rasgue e Jogue Fora" conta a história em que Olga (Viktoriya korotkova) é uma mulher que passou quatro anos presa por ter furado o olho de Oleg (Aleksandr Yatsenko), ex-marido e policial que a agrediu fisicamente por ela ter feito um aborto sem o seu consentimento. A mulher passou por constantes castigos físicos na prisão, cuja principal algoz era uma mulher policial e seu filho, ambos colegas de profissão. Em liberdade, Olga vai até a casa da mãe, Vera (Anna Mikhalkova), buscar a filha, Masha (Sofya Krugova), criada neste período pela avó. Ambas iniciam uma disputa de sangue já nas primeiras cenas pela posse da criança, quando a filha desfere um soco no nariz da mãe, que responde com uma facada. Enquanto foge com a filha para viver com um desconhecido com quem trocou correspondência enquanto esteve presa, sendo esse o principal motivo para a avó tentar impedir que ela leve a neta, Olga entra com Masha em uma floresta. A avó pede ajuda ao ex-marido da filha, que era policial,e juntos iniciam uma jornada ensandecida pela recuperação da menina, marcada por cenas de violência, física e verbal, mas com pitadas cômicas nos diálogos, o que alivia um pouco a narrativa.
Em paralelo, a policial que coordena o presídio onde Olga esteve presa começa a refletir se o filho, também policial, deve seguir o mesmo caminho da família, chegando a ameaçá-lo de “tirar a vida assim como a deu”, alegando que não queria para ele, que tinha uma mulher gestante, a mesma vida decadente que ela teve. Esse questionamento ganha mais espaço na mente da mãe quando o filho relata que bateu na mulher grávida e pede a ela que interceda no relacionamento.
Violência onipresente
O diretor Kirill Sokolov explica que não existe um tempo e nem um local definido onde se passa o filme. “O que se mostra é atual,mas também ocorria há 20 anos e pode acontecer daqui a 10 anos”, avalia. As famílias retratadas carregam problemas estruturais, evidenciando a falta de uma linguagem compreensível entre familiares próximos assim como a transferência de traumas intergeracionais. “É mais comum repetir ciclos do que quebrá-los”, salienta.
A violência é um tema presente praticamente em todas as cenas. Sokolov afirma que a “violência, definitivamente, é institucionalizada na Rússia”. Ele realça que a comunicação entre as pessoas costuma partir para agressões, especialmente como forma de fazer prevalecer a opinião de um sobre os demais. Ele ainda acrescentou que não é crime no país um homem agredir uma mulher, o que torna a violência doméstica uma trivialidade. O russo ilustra a situação com um comentário mórbido, mas que denota uma realidade cruel vivida pelas mulheres russas. “Um homem rico pode bater na esposa por toda a vida, paga-se apenas um imposto pelo ato”, exemplifica, deixando claro que é totalmente contrário a esse sistema. Sokolov destaca que esse traço cultural se potencializou com as notícias de guerra,momento em que deixou toda a população menos tolerante e mais “explosiva”.
Apesar disso, as personagens femininas são mulheres fortes, destemidas, que não se submetem e respondem à altura as ações masculinas, característica que não está restrita à ficção. “As mulheres russas são realmente muito fortes. Enquanto os homens dirigem negócios,as mulheres comandam as famílias”, ressalta. Sokolov comenta que na Rússia, os homens costumam morrer cedo, entre 60 anos e 65 anos, muitas vezes, por questões de alcoolismo, e as mulheres vivem bem mais tempo, entre 80 anos e 85 anos, e seguem à frente das famílias. O diretor também estabelece uma comparação com o Brasil e compartilha a sua percepção dizendo que a vidas das mulheres em cidades pequenas na Rússia assim como deve ser no Brasil.
Sokolov classifica o filme como de perseguição e usa muito a natureza como um elemento de evolução e purificação dos personagens. “Nas primeiras cenas, elas entram em um bosque denso e hermético e terminam em cenários que mostram locais abertos, momento onde as relações tomam um novo rumo”, esclarece. A fantasia é outro aspecto muito utilizado, expresso quando os personagens passam por circunstâncias como ser alvejado por, uma saraivada de tiros, perder muito sangue, cair de penhascos e mesmo assim, permanecerem vivos. Como destaque, ele cita a atuação da intérprete de Masha, atriz mirim selecionada entre mais de 1 mil candidatas, que demonstra coragem, bravura e maturidade, comportamento o qual cria o elo que une mãe, filha e o ex- marido.
O diretor, que é “meio russo e meio ucrânio”, fez questão de ressaltar que é contrário à posição da Rússia no conflito com a Ucrânia. “Muito do que foi abordado no filme clarifica o que estamos vendo e vivendo sobre isso”, disse. Diretor há seis anos, hoje,ele deve ficar mais um tempo no Brasil. Depois, deve continuar a mudança da Geórgia, na Europa, para Los Angeles, nos Estados Unidos. Ele é casado e, neste momento, a esposa está em Moscou, capital da Rússia. No Brasil, ele está pela segunda vez. “Vim há três anos lançar meu primeiro filme, chamado Por que você não morre”.
"Rasgue e Jogue Fora" teve orçamento de menos de 800 mil euros e está em exibição em festivais. Na Rússia, está em 1250 salas de cinema e no mundo está em festivais na Estônia, Estados Unidos, Alemanha, mas foi cancelado em festivais na Escócia e no Novo México devido ao conflito. “Tinha muitas negociações em andamento,mas foram suspensas com o envolvimento da Rússia nesse impasse”, elucida. No Capitólio, a sessão terminou com aplausos e espaço para fazer algumas perguntas ao diretor, que respondeu com ajuda de tradutores. O russo e seu filme foram acolhidos, demonstrando que Porto Alegre escolheu separar o joio do trigo e deixar florescer o entendimento e a paz no campo da cultura.