Discurso puritano pela pureza da impureza

Discurso puritano pela pureza da impureza

Produtor e professor ressalta o emblemático disco dos Beatles, de 1967 e questiona o ato de remasterizar<br />

Correio do Povo

Após sucesso da Beatlemania, os Beatles estavam cansados de ser Beatles

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 * Por Ticiano Paludo, doutor em Comunicação Social, Produtor Musical e Professor da PUCRS

Em 2017, “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, uma das obras mais debatidas dos Beatles, e também uma das mais emblemáticas do Século XX, está fazendo 50 primaveras. Resistir à passagem do tempo permanecendo vigoroso e relevante é um desafio, tanto para os humanos, como para suas emanações artísticas. Após o sucesso da beatlemania, os Beatles estavam cansados de serem os Beatles. Devido à histeria coletiva dos fãs, que gritavam freneticamente e compulsivamente durante os shows do quarteto, e levando-se em conta que, na década de 1960, os equipamentos disponíveis para apresentações ao vivo tinham uma potência sonora limitada, a banda não conseguia se ouvir adequadamente enquanto tocava para a audiência. Essa frustração foi o primeiro passo para o nascimento de “Sgt. Pepper’s”.

O segundo passo decorreria do fato de estarem acorrentados à fama e ao estigma de boy band, o que correspondia a um esgotamento físico e mental. Provocados por Bob Dylan, que apresentou-lhes a maconha, e um trabalho referencial mais maduro e refinado, acabaram, para a alegria de uns, e tristeza de outros, mudando de ares, rumo à liberdade. O novo álbum representava, conceitualmente e musicalmente, uma ruptura estética e um crescimento artístico direcionado ao campo do experimentalismo e da inovação. A “nova banda”, a Banda dos Corações Solitários, era um alterego cúmplice, capaz de desbravar um caminho espinhento e inexplorado, segundo o qual o estúdio de gravação deixava de ser uma mera interface de fixação sonora para se transformar em um potente e criativo laboratório sônico, livre dos ruídos indesejados produzidos pelos fãs. Deixando de ser os Beatles, suas novas personas poderiam enveredar por essa jornada.

De lá para cá, o disco já vendeu milhões de cópias e continua servindo de vetor para a carreira de novos e velhos artistas. Em um mundo ávido por novidades, uma edição comemorativa de 50 anos tem um grande potencial para alimentar amantes extasiados por um sonho que já acabou fisicamente, mas que continua vivo e pulsante nos registros fonográficos e videográficos oficiais, e em materiais inéditos do conhecimento do público. Até aí, nada demais. O grande problema é a chamada remasterização. Após a gravação de um álbum musical, ocorre o processo de masterização, uma espécie de verniz estético ao qual as faixas são submetidas para soarem mais claras, e, em muitos casos, mais possantes. De tempos em tempos, a indústria fonográfica coloca no mercado (como neste caso), as chamadas versões remasterizadas.

Nessa modalidade, ocorre uma espécie de assepsia, uma higienização do som, buscando um resultado mais claro, uma reconstrução mediante refiltragem. A remasterização pode reorganizar os elementos sonoros dentro de um fonograma, mudando seus planos de percepção (algo que estava inaudível vem à tona, e algo que soava deixa de se fazer ouvir), ou engordar mais o som de cada elemento musical. Trata-se de uma purificação pelo fogo da tecnologia, como um ritual de confirmação de votos com os fãs, ou um re-empoderamento mediante nova maquiagem sonora.

O questionamento que fica é: Uma obra-prima precisa ser remasterizada? Na verdade, à cada nova remasterização, perde-se o original e surge uma outra obra, muitas vezes aquém de sua matriz, pelo simples fato de que, em datas comemorativas, é economicamente prudente para as gravadoras. Não só isso, como as novas gerações, por desconhecerem o original, acabam consumindo essa releitura duvidosa, esse extrato de segunda mão. Essa versão de 2017, em especial, é infeliz. Ainda vivemos o hedonismo de 1967, agora, remasterizado pelo mundo da leveza total digitalmente conectada, uma vida em constante e questionável remasterização.

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