Os caminhos da tradição literária negra

Os caminhos da tradição literária negra

Escritores Fernanda Bastos e Luiz Maurício Azevedo conversaram sobre suas obras e autorias negras no Memorial do RS

Leticia Pasuch*

Fernanda Bastos e Luiz Maurício Azevedo na mesa “Literatura Negra: tradição e influência”

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Formação literária negra e tradição foi o mote do encontro de Fernanda Bastos, jornalista, editora de livros e da obra “Selfie-purpurina”, e Luiz Maurício Azevedo, seu marido, crítico literário, também editor de livros e que escreveu "A sociedade da cor: Brasil, país da igualdade racial?" e "Baldeação". Na conversa de título “Literatura Negra: tradição e influência”, que aconteceu no auditório do Memorial do Rio Grande do Sul no início da noite deste sábado, dia 28, o casal debateu sobre autorias negras que os formaram, destacando June Jordan, James Baldwin, Machado de Assis, Maria Firmina dos Reis e Ralph Ellison. Após, fizeram uma sessão de autógrafos das suas obras na Praça de Autógrafos Gerdau.

Fernanda iniciou a mesa apresentando um projeto que está executando junto com Maurício, de fazer um apanhado de trajetórias e de reforçar a importância de uma formação literária negra e uma tradição que perpassa leituras, o que se entende por projeto estético, e que também diz respeito ao histórico de lutas da população negra, também trabalhando na visibilidade dessas vozes, pensando nas lacunas abertas e na falta de conhecimento e de interesse da tradição literária negra.

Para a escritora, há livros importantes para uma formação sólida, e que têm um papel de influência em autores e autoras negras. Há, porém, receio de se trazer certos autres para essa tradição literária, inclusive Machado de Assis. “Muitas vezes o mercado editorial não querem colocar machado de Assis em um lugar de autor negro, como se fosse algo que tirasse ele do status canônico”, Fernanda exemplifica.

Os escritores compartilharam que vêm estudando a tradição literária negra de autores que consideram relevantes para uma formação, com o objetivo de ligar a tradição norte-americana com a tradição brasileira,  que, segundo Fernanda, tende “gostar dos episódios”. Ela explica:

“É sempre o início na literatura negra, como se ela começasse com Carolina Maria Jesus, e depois ela começa com Conceição Evaristo. A gente tem tendência a usar esses episodios do contemporâneo para dar inicio, começar a literatura negra a partir daquele nome de alguém que está vendendo muitos livros”, diz Fernanda. Ela acrescenta que acaba se tornando refém dessas discussões, sempre voltadas a um início de uma tradição na literatura negra a partir de uma contemporaneidade, o que reforça a "fetichização da literatura"  e uma ideia de que ela esta sempre "infantilizada". Para ela, essa ideia invade também a própria posição das pessoas negras na sociedade e a forma que são tratados pelas pessoas brancas no mercado editorial. “Sempre temos que estar no início, estar aprendendo, estar entrando no mercado, mesmo que os dados mostrem que isso não é verdade”, defende.

Juliana de Deus / Feira do Livro de Porto Alegre

Ao lado de Fernanda, Maurício conta histórias de sua vida e de como, no cotidiano, enxergava a presença da literatura negra nas livrarias que frequentava. O escritor também indaga sobre as afirmações de um livro ser considerado "necessário". "Literatura não tem a nada ver com necessidade básica, literatura tem a ver com necessidades estéticas, que não são emergenciais e que às vezes não são passíveis de descobrimento naquele momento que o livro é apresentado", ele diz.

Para Maurício, é preciso enxergar as produções negras pela estética, assim como outras produções de sucesso. “Quando a gente pensou na literatura negra, a gente nunca pensou em falar de racismo. A última coisa que a gente queria era falar de racismo, mas a gente acaba falando, porque a estética negra nunca é considerada dentro do campo da estética, é sempre considerada fora no campo sociológico e antropológico”, reflete Maurício. "Existe concepção pra nós, negros, que tudo que a gente faz tem que ser útil, mas útil em que sentido?”, ele questiona. Útil para o branco. 

Fernanda lembra que, em 2020, haviam discussões envolvendo problemas de visibilidade da literatura negra, e o quanto hoje há outro momento após o impacto de outras produções. "Tu chega em livraria e o espaço que a literatura negra ocupa é diferente dos outros anos”. Ela traz o exemplo de Julie Jordan, poeta de origem caribenha, que cresceu nos Estados Unidos, e que marca essa mudança de atuação. 

“A gente não podia discutir a visibilidade como a gente discutia antes, mas ainda assim essa visibilidade acontece dentro de alguns limites pré-estabelecidos pelo mercado e expectativa do público”, diz Fernanda, entre as diversas provocações feitas durante a mesa, que fizeram o público refletir e repensar a forma que a literatura negra é percebida no Estado e no país.

* Supervisão de Luiz Gonzaga Lopes


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895