“Holocausto Brasileiro”: documentário mostra vida brutal no maior hospício do País

“Holocausto Brasileiro”: documentário mostra vida brutal no maior hospício do País

Baseado no livro homônimo de Daniela Arbex, filme está em cartaz na Netflix

Estadão Conteúdo

Documentário 'Holocausto Brasileiro' entra em cartaz por streaming

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O documentário Holocausto Brasileiro, uma obra impactante que destaca um dos capítulos mais trágicos e sombrios da história do Brasil no contexto dos direitos humanos, estreou na Netflix neste domingo, 25. Baseado no livro homônimo de Daniela Arbex, publicado pela Intrínseca, o filme oferece um olhar detalhado sobre as condições desumanas a que pacientes do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, conhecido como Colônia, foram submetidos, Este local, nas décadas de 1960 a 1980, foi palco de mais de 60 mil mortes, evidenciando um período de negligência e crueldade extremas.

O documentário revela as histórias de pessoas marginalizadas e estigmatizadas pela sociedade, incluindo homossexuais, prostitutas, mães solteiras e vítimas de abuso, muitas das quais foram enviadas ao Colônia sem diagnóstico psiquiátrico preciso. Esses indivíduos foram submetidos a torturas e tratamentos brutais, como alimentação forçada com ratos, ingestão de água de esgoto, exposição ao frio, além de sessões de eletrochoques, tudo sob a conivência do estado e da sociedade da época.

Dirigido por Daniela Arbex e Armando Mendz e lançado originalmente em 2016, Holocausto Brasileiro, classificado para maiores de 16 anos, mergulha nas histórias ocultas do Hospital Colônia de Barbacena, com uma duração de 90 minutos. O filme expõe as condições desumanas enfrentadas por sobreviventes, ex-funcionários, pesquisadores e familiares, desvendando verdades ocultadas durante mais de cinco décadas.

Em conversa com o Estadão, Daniela Arbex, autora e codiretora do documentário Holocausto Brasileiro, oferece uma visão detalhada sobre o processo de criação da obra. Ela relata os desafios de trazer à tona de forma sensível esses eventos marcados por profundas atrocidades e reflete sobre a relevância contínua do tema abordado pelo documentário nos debates atuais sobre saúde mental e direitos humanos.

O processo de pesquisa para ‘Holocausto Brasileiro’ exigiu um mergulho em histórias profundamente emocionais e traumáticas. Poderia compartilhar conosco algum momento ou descoberta durante sua pesquisa que tenha sido particularmente impactante para você ou que tenha mudado sua perspectiva sobre o tema tratado no documentário?

O Holocausto Brasileiro 'nasceu' para mim quando eu tive acesso as fotos feitas pelo ex-fotógrafo da Revista O Cruzeiro, Luiz Alfredo, dentro do hospital Colônia em 1960. Eu tive acesso a essas imagens, em 2010, 50 anos depois que elas foram feitas. Fui atravessada por aquelas fotos, porque em nenhuma delas eu consegui visualizar o hospital. Elas me remetiam a um campo de concentração.

A partir daquele contato com o trabalho do Luiz Alfredo, eu quis encontrar as pessoas fotografadas por ele 50 anos antes. A grande dificuldade era a incerteza sobre a chance de encontrar sobreviventes. Neste caso, a probabilidade era ainda menor, por tratar-se de pessoas violadas e institucionalizadas por toda uma vida. O processo de investigação do paradeiro desses sobreviventes demandou uma longa pesquisa. Percorri inúmeros endereços, bati em muitas portas erradas. Mas quando eu encontrei o primeiro sobrevivente fotografado pelo Luiz Alfredo eu não parei mais. Inicialmente, localizei 20 pessoas. Mais tarde, encontrei 160 remanescentes daquele período. A localização de cada um foi um dos momentos mais impactantes da minha carreira.

Ao lidar com um tema tão complexo e sensível, quais foram os principais desafios que você enfrentou para equilibrar fidelidade às histórias reais com a necessidade de criar uma narrativa compreensível e envolvente para o público do documentário?

Por incrível que pareça, o maior desafio não foi encontrar os sobreviventes. Foi conseguir fazer com que os funcionários do hospital e ex-funcionários - testemunhas dessa história -, falassem sobre o que viram. Eles se sentiam acuados diante de um trabalho que traria à tona uma realidade invisibilizada pelo esquecimento. Foram conversas difíceis. Mas eu me preparei para todas elas. Estava ali para ouvi-las e não para julgá-las. Quando elas entenderam isso acabaram revelando atrocidades ocorridas naquele local com a conivência do estado e de uma sociedade cuja cultura higienista contribuiu para a existência e manutenção de um espaço que não estava destinado a tratar e cuidar, mas a excluir os socialmente indesejáveis.

Considerando o contexto atual da saúde mental e os direitos humanos, qual é a relevância de trazer à tona a história do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena? Como você acredita que a conscientização gerada pelo documentário pode contribuir para as discussões atuais sobre o tratamento e a percepção da saúde mental no Brasil e no mundo?

O documentário nunca esteve tão atual, porque o racismo ainda é a base da lógica manicomial brasileira e a saúde mental continua em disputa no país. Na última década foram inúmeros os retrocessos nesta área, com ameaça permanente de uma contrarreforma da política de saúde mental, a partir de discursos ideologizados e voltados para o retorno das práticas manicomiais.

Hoje, quando se fala de questões relacionadas a essa questão, como o uso prejudicial de álcool e outras drogas, toda a discussão dessa temática continua focada numa perspectiva de proibicionismo e na guerra contra as drogas, principalmente no retorno das internações compulsórias que ganharam força com o aumento de leitos nas comunidades terapêuticas de caráter religioso que são financiadas pelo poder público. O Brasil saltou de dois mil leitos para 10 mil leitos nos últimos anos. Esses leitos estão sendo usados também para a internação compulsória da população LGBTQIA+, com o enfoque na cura gay.

O fato é que a busca pelo controle dos corpos e subjetividades consideradas desviantes é recorrente na história. Desde o mundo antigo, os indesejáveis sociais, inclusive os chamados insanos, foram segregados, violados, e condenados a viver na invisibilidade sob a justificativa de que essas pessoas representavam a recusa da civilização, como apontou o sociólogo britânico Andrew Scull em seu livro sobre a loucura na civilização. Mas o cuidado em liberdade é um direito inegociável. E o livro e o documentário Holocausto Brasileiro está aí para nos lembrar disso.


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