Joss Whedon desconstrói Shakespeare em "Muito Barulho por Nada"
Diretor mantém métrica dos versos e traduz para ação contemporânea do cinema
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A audácia do diretor consiste em filmar a peça mantendo a métrica dos versos, mas transpondo a ação para o mundo contemporâneo. A sensação inicial é de estranhamento e, depois, de apreensão. Louis Malle, para só citar um exemplo, repensou a relação entre teatro e cinema em "Tio Vânia" em Nova Iorque. Em vez de recriar o original de Chekhov, ele propôs uma leitura dramática da peça, mantendo as convenções do teatro. Whedon trata sua ação realisticamente, mas a ambientação é o aqui e agora. A apreensão instala-se. Ele vai conseguir manter seu partido até o fim?
Se fosse escrita hoje, a peça com certeza seria atacada como incorreta. Muito barulho, sim, mas por nada? Pelos padrões atuais, o que Hero sofre por parte de seu amado Cláudio configura um caso de bullying. A garota é um modelo de virtude, mas o príncipe João, para atingir o irmão, Pedro, logra que um aliado convença o pretendente de que ela o trai. Cláudio não só acredita como espera a cerimônia de casamento para humilhar Hero perante os convidados.
Após as chamadas peças da noite - "Hamlet", "Otelo", "Macbeth" -, os especialistas gostam de dizer que Shakespeare atingiu um estado de serenidade com o ato final de "O Mercador de Veneza". Na sequência, vieram as comédias. São divertidas, luminosas. O caso de "Muito Barulho" é particular. Levanta questões - como após ser tão humilhada, Hero aceita Cláudio de volta? É o triunfo do amor, mas para constatar como Shakespeare aborda os temas do casal e das relações é preciso reportar-se ao que não deixa de ser uma subtrama - a ligação complicada entre Benedick e Beatrice.
Eles são, ou não, os protagonistas de "Muito Barulho"? Há controvérsia, mas com as confusões dos 'policiais', os diálogos mais espirituosos da peça são os duelos verbais entre ambos. Brigam por nada, isto é, por tudo. Amam-se, e Pedro vai urdir com Leonato, pai de Hero, para que o amor triunfe.
O próprio Leonato tem falas terríveis condenando a filha por sua suposta traição. Chega a desejar sua morte. Muita gente invoca os sonetos para sustentar a tese de que Shakespeare era gay. Talvez fosse pansexual. E era - aqui, mais que nunca - misógino. O amor triunfa, mas a guerra dos sexos não termina com equidade. Curioso partido para um produtor e diretor - Whedon - reputado por haver transformado Sarah Michelle Gellar em heroína feminista, na TV, em "Buffy".
Na verdade, todo o trabalho de desconstrução de Shakespeare se faz sobre esses conceitos. A grande ousadia, a maior de Whedon, consiste em manter o texto para propor Shakespeare como inventor de um gênero - a screwball comedy. Benedick e Beatrice recriam o humor epigramático das velhas comédias com Katharine Hepburn e Spencer Tracy, ou Kate e Cary Grant. Amy Acker e Alexis Denisof são ótimos, e ele é ainda melhor que ela. É mais um filme em preto e branco a ganhar a tela e revisar pressupostos clássicos, como o "Tabu" de Miguel Gomes e a "Branca de Neve" de Pablo Berger. Muito Barulho é.... Tudo.