O pampa reinventado de R. Tavares

O pampa reinventado de R. Tavares

Autor de ‘Ainda que a Terra se Abra’ relança duas obras: ‘Noite Escura’ e ‘Andarilhos’

Henrique Massaro

Natural de Bagé, Tavares traz contemporaneidade à literatura regional

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Um homem de passado desconhecido e futuro incerto, que garante o próprio sustento tirando a vida dos desafetos de quem pagar mais. Um pistoleiro cujos contornos vão aparecendo aos poucos, ainda que sem serem totalmente revelados, na negritude da madrugada de uma terra sem lei que ainda não reconheceu a chegada do século XXI. Os elementos parecem brotar da literatura pulp ou de um faroeste tardio, mas estão geograficamente bem distantes da terra dos caubóis. Marco, o matador de aluguel em questão, está em pleno pampa, transitando por estâncias da fronteira gaúcha que ganham forma em um imaginário sangrento e brutal de “Noite Escura”, primeiro livro de Rodrigo Tavares, escrito em 2009, e agora relançado pela editora Pergamus.

Escrita durante uma oficina literária de Alcy Cheuiche, “Noite Escura” é uma novela que se desenrola em uma única madrugada após um passo em falso de seu protagonista, um perito em matar que irá até as últimas consequências na tentativa de reparar seu erro. Com uma narrativa alternada, sempre próxima de Marco ou de um pobre coitado que cruza seu caminho, o suspense faz com que as perguntas do leitor – quem é este homem? Por que ele mata? A mando de quem? – fiquem no ar enquanto a história mantém seu movimento e é descortinada até o final, que não demora a chegar. Nas suas 75 páginas, além de um enredo instigante apresentado por Tavares já em seu primeiro livro, são encontrados elementos que serão desenvolvidos nas suas obras posteriores e que fazem parte de um projeto literário ambicioso e bem determinado.

Natural de Bagé, Tavares não só ambienta suas histórias longe de Porto Alegre e outros centros urbanos, como procura dar ares contemporâneos a uma literatura regional já consagrada, mas esquecida nas últimas décadas. Já em “Noite Escura”, mas, principalmente, nos trabalhos seguintes, como “Andarilhos” e Ainda que a Terra se Abra”, leitores que se mostram cada vez mais espalhados pelo Brasil, deparam-se com a composição de um léxico meridional. Não simplesmente de um gaúcho do Rio Grande do Sul, mas de um nativo da metade sul do Estado, onde uma batida entre dois carros ou cavaleiros se chama pechada, obrigado se responde com “merece” – e não com um genérico “de nada” –, e chimarrão é apenas mate. O Uruguai, afinal de contas, está logo ao lado, mais próximo do que a Capital e o restante do Brasil.

É em “Noite Escura” que R. Tavares coloca seus leitores pela primeira vez em São Francisco do Sul, que ambienta também a história de “Ainda que a Terra se Abra”, último romance do autor, lançado em 2020 pela editora Taverna. A cidadezinha fictícia é imaginada através da união dos municípios de Bagé, Pedras Altas e Aceguá, este último colado à linha imaginária Brasil/Uruguai. O linguajar e os costumes dos personagens, bem como as paisagens da região desenhadas pelo autor, remetem sempre a este pedaço tão específico do continente americano, que por vezes parece mais estrangeiro do que nacional, embora o escritor se recuse a retratar o Rio Grande como uma terra apartada do restante do país.

“Vejo a gente muito mais como Brasil do que Uruguai ou Argentina. Tento colocar minhas histórias sempre se passando no verão, porque temos muito mais verão do que inverno”, pontua Tavares, que refuta a ideia de que o gaúcho é o “europeu brasileiro” e a romantização do frio. “Acho que isso nos afasta tanto do resto do país que faço questão de mostrar a gente suando, com camiseta empapada de suor, e esse visual meio alaranjado, que é lindo, que temos aqui, a despeito daquele céu cinza que adoram retratar”, explica.

Em “Andarilhos”, publicado em 2017 pela Taverna e que está sendo relançado pela editora Zouk, mais do que nos outros dois livros, a literatura de Tavares se torna visivelmente mais telúrica. No romance, o pampa é tão personagem quanto os homens que levam uma vida errante sobre ele. Este “oceano de pastagens verdes a perder de vista”, como bem define uma passagem do livro, se espalha pelas páginas que levam desgarrados, sempre no lombo de um cavalo, a vagar pelas coxilhas até chegarem – de passagem – aos bolichos, galpões e estâncias das regiões da campanha gaúcha da primeira metade do século passado.

Diferentemente das outras obras, “Andarilhos” retrata um gaúcho de outros tempos, por vezes oprimido pelos patrões e condenado a suar por uma terra que jamais será sua, por outras, determinado a tomar à unha o próprio destino. É também o mais regional dos três livros. Aqui, não há somente o uso de determinadas expressões sulistas, mas de um dialeto carregado da região fronteiriça. Desayunos, astillas e buenos días se misturam a tresontontes, rebencaços e manotaços na boca dos campeiros. Palavras tão específicas de uma região, mas que encontram sonoridade em locais inesperados. “Quando lancei o ‘Andarilhos’, achei que ia repetir o ‘Noite Escura’, que ia ser lido por Bagé e região, e acabou me surpreendendo. Ele é muito mais lido no Norte, Nordeste, na região de São Paulo e Minas Gerais, do que em Porto Alegre”, afirma Tavares.

Há, talvez, uma conexão mais forte do que se imagina entre os homens e mulheres do meio rural, seja nos pampas, no interior paulista ou no sertão nordestino. “Notei que havia uma demanda reprimida de pessoas que não moram nas capitais e que querem se ver identificadas nos livros, que querem ter representatividade”, explica o autor. As características de cada local são distintas, mas as aventuras são universais. No caso de “Andarilhos”, elas acompanham as andanças de dois gaúchos. Pedro Guarany, o protagonista, é descendente de indígenas e carrega os ensinamentos familiares da doma racional de cavalos, sem a brutalidade da maioria dos campeiros. Já João Fôia, cicatriz em forma de folha no olho direito, é um tropeiro desde que se entende por gente, carregando gado de um campo a outro. Em comum, os homens têm a vida sem paradeiro e de pouso incerto.

É no trote desses andarilhos que o Rio Grande vai sendo desenhado diante dos olhos do leitor. Na prosa que sempre acompanha o movimento de seus personagens, Tavares resgata traços do velho pampa que vão além do relevo. As páginas, de onde sempre parece emanar o som de uma milonga e o cheiro da carne gorda próxima ao braseiro, expõem também marcas da escravidão e das guerras, e demarcam períodos contemporâneos à narrativa, seja retratando as atividades de estâncias e charqueadas ou figuras reais, como Joaquim Francisco de Assis Brasil. A construção do personagem Alphonse Saint Dominguet, um francês que se aventura pelo Sul para estudar e escrever um livro sobre estas bandas, alusão clara a Auguste Saint-Hilaire, é o toque de mestre do autor em sua preocupação com a questão histórica, que traz verossimilhança aos conflitos apresentados e até a certos mitos – o mboitatá que arde no horizonte ou um tigre que se esconde nas matas – que aparecem ao longo do romance, sendo uma voz vinda de fora neste universo tão local.

Nas viagens desses personagens, que, em determinado momento, viram uma só, o livro vai revelando detalhes de um passado de sangue e vingança, que serve de fio condutor para a narrativa. Com pré-venda marcada para este mês, o romance volta com nova proposta editorial: textos de apresentação de Arthur Telló, José Francisco Botelho, Ivandro Menezes, Leticia Wierzchowski e Alcy Cheuiche, além de capa do ilustrador Felipe Constant. Se “Noite Escura” é a porta de entrada para o regionalismo moderno, “Andarilhos” é o mergulho nas raízes pampianas. O leitor que resolver completar a obra e chegar até “Ainda que a Terra se Abra”, emergirá de volta para os dias de hoje. No mais contemporâneo de seus trabalhos, Tavares mantém a linguagem seca, influenciada por Cormac McCarthy, J.M. Coetzee e Michel Laub, suavizando o repertório de expressões regionalistas e lançando-as nos momentos certos. “Há um cuidado de não apenas retratar, mas de usar as palavras de uma forma mais literária, não só jogadas no texto.”

Lançado durante a pandemia e com reimpressão já confirmada pela editora Taverna, “Ainda que a Terra se Abra” não é uma história de peregrinação pelo Sul, mas de retorno às origens. Martín, um professor universitário, volta à estância da família após a morte do pai para a partilha da herança. É o ponto de partida para o reencontro com um passado trágico, violento e ainda não solucionado. Através dele, o autor dá vida a pessoas e paisagens de um Rio Grande que ainda existe, e nos mostra uma literatura que persiste. Diferentemente de seus personagens sem destino aparente no seu constante movimento, nos três livros vemos uma proposta literária que, mesmo em andamento, tem um lugar para chegar. Segundo o próprio escritor, o objetivo já está traçado: “Conseguir me aprofundar ainda mais nas temáticas humanas utilizando essas nossas metáforas do regionalismo”.


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