O recado de Belchior que ninguém ouviu

O recado de Belchior que ninguém ouviu

Jornalista da Rádio Guaíba, Carlos Guimarães comenta morte de músico<br /><br />

Carlos Guimarães

Aos 70 anos, o cantor e compositor Belchior morreu no dia 30 de abril

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O ano de 1976 foi emblemático para a música mundial. Na Inglaterra e nos Estados Unidos surgiam os punks, que seriam condutores do principal movimento de contracultura da época. A música pop estava quebrada, cada vez mais desconectada principalmente dos jovens. Surgia a disco music, preconizando a diversão pela diversão, despreocupando-se das durezas do cotidiano. O rock, mergulhado em técnica progressiva e ainda na ressaca de uma onda hippie que não levou a lugar nenhum, direcionava-se para a megalomania, shows espetaculares, muita histeria e pouco impacto. Do underground, os punks reuniam-se para desestruturar esta lógica, impulsionados pela crise financeira dos trabalhadores no Reino Unido e pelo tédio com o american way of life. Havia motivos para uma revolta autêntica, vinda do proletariado, dos jovens entediados e de quem queria, à sua maneira, mudar o mundo.


No Brasil, há de se entender, sobretudo, de que forma a música se apresentava no período. Dando os primeiros passos para a disco, a revigoração ensaiada pela soul music no início da década se fragmentava entre o conceitual de Jorge Ben e o racional de Tim Maia. Rita Lee pós-Mutantes tentava com o brilhante “Fruto Proibido”, mas, segundo a própria, rock ainda era coisa de bandido. Os jovens roqueiros de plantão estavam ocupados demais tentando imitar o Yes ou o Pink Floyd. O gosto popular entregava-se aos bregas, ao Roberto Carlos, às músicas de novela e aos enlatados tupiniquins, como Morris Albert e Mark Davis.

O país descobria Cartola e os sambistas do morro de forma tardia. Imediatamente, foram incorporados a uma espécie de indústria cultural-intelectual hegemônica que contemplava as gravadoras, os megaempresários e os artistas legitimados muito mais por uma crítica purista do que por um público interessado. A ditadura militar completava mais de uma década e um dos principais focos de oposição se dava pelos artistas, mas de uma forma intelectualizada demais para ser absorvida pelas massas. Havia um domínio da MPB tradicional e dos velhos baianos tropicalistas, com resquícios dos festivais, uma hegemonia que já perdurava por uma década ao menos.

A bifurcação da MPB conduzia a criação para diferentes vias. Caetano estava cantando para o corpo ficar Odara. Gil colocava um pé na disco e uma mente no reggae. A música de protesto perdeu força, resumindo-se às metáforas de Chico, voltando a ganhar força somente no final da década com a visceral “O Bêbado e a Equilibrista”. Contudo, havia caminhos alternativos para o surgimento de novidades autênticas, plenas e originais. Um destes era aparecer em trilha de novela, ocupado pelo alento do ano, chamado Guilherme Arantes, que emplacou “Meu Mundo e Nada Mais” para o grande público, possivelmente o surgimento de uma música pop autoral brasileira. A outra brecha era exatamente usar este sistema consolidado para promover novos autores e formatos. Era utilizar o selo de qualidade do super artista para apresentar novos compositores. Este foi o caminho seguido por Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, ou simplesmente Belchior. No caso do compositor cearense, a brecha se chamava Elis Regina.

Quando Elis gravou para o espetáculo “Falso Brilhante” as faixas “Como Nossos Pais” e “Velha Roupa Colorida”, Belchior lançava “Alucinação”, uma crônica do cotidiano que serviria para, ao menos, apresentar um retrato fiel do verdadeiro Brasil dos anos 1970. Belchior não tinha a sutileza de Chico, o misticismo de Gil ou o egocentrismo de Caetano. Bigodudo, nordestino e com um timbre de voz que fugia dos maneirismos recorrentes no período, era uma espécie de bardo, um cantor do cotidiano, um cronista da selva de pedra. Fugia da aridez do Nordeste, entregando-se à personagem do retirante apaixonado, confuso e impactado com a metrópole. Lançava-se como um genuíno opositor do modelo hegemônico de então, porém pouco levado a sério, já que narcisos sempre acharão feio o que não é espelho.

Em “Alucinação”, um dos maiores discos já produzidos no país, Belchior se situa como um itinerante da contracultura. Apenas um rapaz latino-americano, escancarava que não tinha dinheiro no banco. Cantava o concretismo do drama das pessoas dessas capitais com um canto, que era torto, feito faca, para cortar a carne de gente comum, do preto, do pobre, do estudante, de uma mulher sozinha. Niilista, contundente e direto, contradizia o espiral alegórico impetrado pelos tropicalistas, a poesia lúdica dos mineiros, as brincadeiras semânticas dos emepebistas e a megalomania habitual dos baianos. Era um nordestino que escrevia sobre o mundo, a partir do seu ponto de vista, brutal, caótico e definitivo.

Belchior comportava-se, do seu jeito, como um punk. Com o cantar lancinante do indomado, apresentava-se como uma espécie de interlocutor da contracultura a um sistema que apartava quem não seguia a tal receita de bolo. Tinha a sinceridade de um jovem, a lucidez de um observador e, ao mesmo tempo, o ponto de vista de um imigrante. Quando diante dos edifícios e das agruras da cidade grande, alguma coisa acontecia não em seu coração, mas em suas vísceras, na transformação de seu ponto de vista, na urgência de retratar a simplicidade, a brutalidade, a crueza e o cinza do seu novo entorno. Não era tudo divino e maravilhoso, era preto no branco, concreto e real, palpável, tácito. Como os punks faziam lá fora.

Belchior morreu no anonimato, aos 70 anos, numa despedida até certo ponto previsível de quem não fez muita concessão às tentações do sucesso fácil. Nunca foi midiático, nunca foi agradável e nunca fez média para se tornar mais ou menos bem-sucedido. No final da vida, entre idas e vindas, parecia um peixe fora d’água neste mundo pós-moderno de ostentação, problematização, rela-tivização e chatices et al. Perdido em sua alucinação de suportar o dia a dia, possivelmente não suportava mais um mundo onde importa muito mais aparentar algo do que ser algo.

Belchior não conseguiu fazer um retrato deste cotidiano, provavelmente por não se importar muito com ele. Morreu do mesmo jeito que surgiu para a música: um itinerante, um andarilho trôpego entre paixões arrebatadoras, deslizes efêmeros e devaneios concretos. Morreu punk, como fora punk. Morreu com um recado ao seu estilo, de que toda sinceridade é possível nas tentações das relações fugazes, como, de fato, pode se traduzir o mundo atual. Morreu jovem, talvez em alguma curva no seu próprio caminho, com todo som, toda fúria e toda pressa de viver, gritando desesperadamente em português, mas sem ninguém ouvir.

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