O recado de Belchior que ninguém ouviu
Jornalista da Rádio Guaíba, Carlos Guimarães comenta morte de músico<br /><br />
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O ano de 1976 foi emblemático para a música mundial. Na Inglaterra e nos Estados Unidos surgiam os punks, que seriam condutores do principal movimento de contracultura da época. A música pop estava quebrada, cada vez mais desconectada principalmente dos jovens. Surgia a disco music, preconizando a diversão pela diversão, despreocupando-se das durezas do cotidiano. O rock, mergulhado em técnica progressiva e ainda na ressaca de uma onda hippie que não levou a lugar nenhum, direcionava-se para a megalomania, shows espetaculares, muita histeria e pouco impacto. Do underground, os punks reuniam-se para desestruturar esta lógica, impulsionados pela crise financeira dos trabalhadores no Reino Unido e pelo tédio com o american way of life. Havia motivos para uma revolta autêntica, vinda do proletariado, dos jovens entediados e de quem queria, à sua maneira, mudar o mundo.
O país descobria Cartola e os sambistas do morro de forma tardia. Imediatamente, foram incorporados a uma espécie de indústria cultural-intelectual hegemônica que contemplava as gravadoras, os megaempresários e os artistas legitimados muito mais por uma crítica purista do que por um público interessado. A ditadura militar completava mais de uma década e um dos principais focos de oposição se dava pelos artistas, mas de uma forma intelectualizada demais para ser absorvida pelas massas. Havia um domínio da MPB tradicional e dos velhos baianos tropicalistas, com resquícios dos festivais, uma hegemonia que já perdurava por uma década ao menos.
Quando Elis gravou para o espetáculo “Falso Brilhante” as faixas “Como Nossos Pais” e “Velha Roupa Colorida”, Belchior lançava “Alucinação”, uma crônica do cotidiano que serviria para, ao menos, apresentar um retrato fiel do verdadeiro Brasil dos anos 1970. Belchior não tinha a sutileza de Chico, o misticismo de Gil ou o egocentrismo de Caetano. Bigodudo, nordestino e com um timbre de voz que fugia dos maneirismos recorrentes no período, era uma espécie de bardo, um cantor do cotidiano, um cronista da selva de pedra. Fugia da aridez do Nordeste, entregando-se à personagem do retirante apaixonado, confuso e impactado com a metrópole. Lançava-se como um genuíno opositor do modelo hegemônico de então, porém pouco levado a sério, já que narcisos sempre acharão feio o que não é espelho.
Em “Alucinação”, um dos maiores discos já produzidos no país, Belchior se situa como um itinerante da contracultura. Apenas um rapaz latino-americano, escancarava que não tinha dinheiro no banco. Cantava o concretismo do drama das pessoas dessas capitais com um canto, que era torto, feito faca, para cortar a carne de gente comum, do preto, do pobre, do estudante, de uma mulher sozinha. Niilista, contundente e direto, contradizia o espiral alegórico impetrado pelos tropicalistas, a poesia lúdica dos mineiros, as brincadeiras semânticas dos emepebistas e a megalomania habitual dos baianos. Era um nordestino que escrevia sobre o mundo, a partir do seu ponto de vista, brutal, caótico e definitivo.
Belchior comportava-se, do seu jeito, como um punk. Com o cantar lancinante do indomado, apresentava-se como uma espécie de interlocutor da contracultura a um sistema que apartava quem não seguia a tal receita de bolo. Tinha a sinceridade de um jovem, a lucidez de um observador e, ao mesmo tempo, o ponto de vista de um imigrante. Quando diante dos edifícios e das agruras da cidade grande, alguma coisa acontecia não em seu coração, mas em suas vísceras, na transformação de seu ponto de vista, na urgência de retratar a simplicidade, a brutalidade, a crueza e o cinza do seu novo entorno. Não era tudo divino e maravilhoso, era preto no branco, concreto e real, palpável, tácito. Como os punks faziam lá fora.
Belchior não conseguiu fazer um retrato deste cotidiano, provavelmente por não se importar muito com ele. Morreu do mesmo jeito que surgiu para a música: um itinerante, um andarilho trôpego entre paixões arrebatadoras, deslizes efêmeros e devaneios concretos. Morreu punk, como fora punk. Morreu com um recado ao seu estilo, de que toda sinceridade é possível nas tentações das relações fugazes, como, de fato, pode se traduzir o mundo atual. Morreu jovem, talvez em alguma curva no seu próprio caminho, com todo som, toda fúria e toda pressa de viver, gritando desesperadamente em português, mas sem ninguém ouvir.