Preservação das artes cênicas censuradas

Preservação das artes cênicas censuradas

Teatro de Arena digitaliza textos teatrais censurados durante o período militar de 1964 a 1985

Letícia Pasuch*

O Acervo Sonia Duro, do Teatro de Arena, foi digitalizado e disponibilizado para acesso público no site do Acervos da Cultura RS

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Durante o período da ditadura militar (1964-1985), as esferas musicais, literárias e cênicas tiveram uma importante participação como resistência cultural à censura e repressão, principalmente na vigência do AI-5. Nas folhas datilografadas e mimeografadas dos textos teatrais, é possível visualizar os carimbos da censura em trechos não autorizados pelos censores, desde palavrões a cenas que continham, aos seus olhos, “tentativas contra a moral e os bons costumes”. À época, as peças eram previamente apresentadas nos “ensaios para censura”. No teatro, com a ausência de público, apenas os censores sentavam na plateia. Junto a uma prancheta, um lápis e um papel na mão, eles anotavam tudo o que deveria ser retirado de cena.

O Espaço Sonia Duro – Centro de Documentação e Pesquisa em Artes Cênicas, com sede no Teatro de Arena, em Porto Alegre, carrega a memória cênica censurada dessa história, com textos oriundos do extinto Departamento de Censura da Polícia Federal, manifestações dos censores da época, anotações dos autores ou intérpretes teatrais, entre outros materiais. Desde a última quinta-feira, dia 11 de maio, o acervo, que só existia em forma física, está totalmente digitalizado e disponibilizado para acesso público.

Gabriela Munhoz, diretora do Instituto Estadual das Artes Cênicas (Ieacen) e do Teatro de Arena, salienta que, desde quando assumiu a diretoria, há pouco mais de dois anos, já havia uma preocupação da Secretaria da Cultura do Estado (Sedac) em como preservar esses importantes e antigos documentos. “O Teatro de Arena é um espaço que tem, estruturalmente, questões de umidade, e que para hoje em dia manter papel e documentos em acervo, existem estratégias e questionamentos sobre a longevidade da conservação”, afirma. O acervo digital, portanto, seria, um caminho para essa conservação.

Leitura dramatizada

Para celebrar essa importante etapa de conservação, o Teatro de Arena promoveu, no mesmo dia do lançamento da digitalização, a leitura dramatizada do texto teatral "Quem roubou meu Anabela?" (1972), de Ivo Bender. A peça, dirigida por Rodrigo Marquez, contou com os artistas Aurea Baptista, Bruno Fernandes, Lisiane Medeiros e Marcelo Ádams.

No palco, com três fileiras de plateia na frente e aos lados, a comédia em um ato foi ambientada em uma suposta sala de estar. Eram quatro personagens em cena: o casal Umberto e Valéria Marcoso; a prima de Valéria, Genciana; e Jasmim, vendedor de horóscopo. As primas, com maior espaço em cena, viviam uma relação conturbada, perpassada por inveja e provocação. Valéria, infiel ao seu marido, em dado momento se envolve com Jasmim, que entregava seu horóscopo. Genciana estava sempre invocando demônios. Naquela noite, aconteceria um grande evento: a festa da Libertação da Carne. A peça evocava, portanto, a questão da liberdade e revolução sexual, presente nos anos 60 e 70. 

A pergunta “Quem roubou meu Anabela?” foi escutada apenas ao final do ato: era o sapato que Valéria calçaria para ir ao evento da noite. Criado entre 1930 e 1940, o sapato tornou-se febre após a Segunda Guerra Mundial, quando o italiano Salvatore Ferragamo lançou o salto em cortiça. Seu formato tem o salto maior no alto do calcanhar, diminuindo gradualmente até a parte da frente. Porém, quem calçou o sapato em cena não foi Valéria, mas o marido.

“A gente vê um pouco da questão da comicidade e do non sense que aparece na estrutura da peça”, salienta Marcelo Ádams. O ator que interpretou Umberto também aponta, no ritmo cômico, a presença política nas entrelinhas, que os censores deixaram escapar. 

A peça é uma das mais famosas de Ivo Bender, considerado o dramaturgo mais importante na história das artes cênicas do Rio Grande do Sul. Começou a escrever para teatro em 1961, carregando 50 anos de obras. Produzida no auge do regime militar, "Quem roubou meu Anabela?" teve fragmentos censurados por serem considerados “moralmente inadequados”. “Os artistas que produziam para essas artes estavam sempre acuados pela possibilidade do que fossem escrever ou criar fosse de alguma forma censurado”, analisa Ádams, que também é pesquisador da obra de Ivo Bender e já dirigiu a peça em duas ocasiões: em 2011, na Semana Ivo Bender, e na FestiPoa Literária, em 2012.

Acervo Sonia Duro

Sonia Duro, que carrega o nome do acervo, foi atriz, produtora cultural e a primeira diretora do Teatro de Arena após a sua reabertura, em 1991. Enquanto esteve fechado, ela foi a responsável para que o espaço estivesse em boas condições. Após sua morte, em 2004, o Centro de Documentação e Pesquisa em Artes Cênicas passou a ser nomeado Espaço Sonia Duro. Além de um local para atividades culturais, mais de 2 mil textos dramáticos e outras documentações relativas à trajetória do Teatro de Arena e das artes cênicas no Estado fazem parte do escopo do acervo, agora também on-line.

A diretora Gabriela reforça o trabalho junto à Sedac da valorização da conservação e manutenção dos patrimônios materiais e imateriais da cultura. Para ela, a digitalização do Acervo Sonia Duro dá continuidade a este trabalho. "Temos o desejo de que esse processo de digitalização fomente e potencialize novas trocas e diálogos sobre essa preciosidade de histórias que temos registradas, agora, para uma vida muito mais longa", salienta, destacando também o trabalho de Alexandre Veiga, arquivista responsável pela digitalização do acervo. 

A coleção digital do Acervo Sonia Duro está disponível na página Acervos da Cultura RS, em acervos.cultura.rs.gov.br. Qualquer pessoa pode acessar, sem fins comerciais.

*Sob a supervisão de Luiz Gonzaga Lopes


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