Mulheres buscam mais espaço na ciência

Mulheres buscam mais espaço na ciência

Elas ainda são sub-representadas no mundo da produção científica, mas há esforços e projetos concretos para tentar mudar a situação

Brenda Fernández

Coordenadora do "Meninas na Ciência", Carolina Brito (no centro) e as graduandas Laura Schwingel (E) e Marina Gonçalves (D)

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“Cite o nome de três cientistas homens. Agora diga três cientistas mulheres.” Esse é um teste rápido e espontâneo bem comum nas redes sociais em que uma câmera grava em tempo real as respostas (ou a falta delas) de transeuntes abordados na rua – e o constrangimento que isso provoca. Marie Curie, física polonesa criadora do termo radioatividade, é um dos nomes femininos citados. Mas ainda assim, a pesquisadora que levou três Prêmio Nobel, um em Física e dois em Química, é muito menos lembrada que Albert Einstein, por exemplo.

A sub-representação também está na autoria de artigos científicos, mostrou um estudo publicado na PLoS Biology em 2021. No grupo de 2% dos autores com mais referências entre os pares, a predominância masculina é de 3,2 vezes. O índice sobe para 6,4 vezes ao considerar pesquisadores com mais de 30 anos de atividade. Há avanços na presença de mulheres na produção e divulgação de conhecimento científico, mas são poucos.

“No mundo, as mulheres são cerca de 30% entre as cientistas. No Brasil, o número é muito parecido com esse e dados recentes do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] mostram que nos últimos 20 anos esse número não mudou em nada quando eu olho o estado global. O curioso é que no Brasil as mulheres já são mais de 50% nas universidades, no mestrado e no doutorado”, explica Marcia Barbosa, professora e pesquisadora em Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs).

Membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e da Academia Mundial de Ciências (TWAS), ela foi considerada, em 2020, pela ONU Mulheres, uma das mulheres que mudou o mundo com a ciência. No ano passado ela assumiu como secretária de Políticas e Programas Estratégicos, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).

Dois processos acontecem à medida que a mulher sobe na carreira de pesquisadora científica, lembra Marcia. O primeiro deles é a maternidade, cita, onde as “instituições não estão preparadas para que mulheres tenham uma carreira e a tarefa que é cuidar dos filhos”. O cenário fica ainda mais apertado quando olhamos para o número de mulheres que ocupam o topo da pesquisa científica, com bolsas de produtividade 1A, 1B, as mais remuneradas do CNPq. “Mesmo passada a maternidade, a mulher continua tendo outros obstáculos”, lembra a pesquisadora em relação aos espaços de poder.

O assunto que antes era ignorado, hoje é frequente em congressos, mesas de debates e tema para criação de políticas públicas para incentivo e permanência. O Parent Science é um dos movimentos engajados em discutir a parentalidade dentro do universo da academia e da ciência. O ‘Manual de direito das mães docentes/pesquisadoras’ elaborado pelo Parent Science aponta a inexistência de informações e políticas específicas voltadas para o apoio à maternidade nas instituições de ensino superior privadas. Para além da licença-maternidade de 120 dias, Marcia Barbosa ressalta a “urgência de institucionalizar medidas compensatórias”.

A área de exatas é onde as mulheres menos ascendem. Globalmente, as mulheres são só 30% nas universidades, mas esse índice segue afunilando na carreira. “Nas bolsas de produtividade científica elas não são 13%, e no topo da carreira são em torno de 5% a 6%”. No entanto, já há um decréscimo na pós-graduação nos cursos de Física e Matemática.

Em 2023, as mulheres eram 30% das pesquisadoras em bolsas de produtividade em Pesquisa Sênior do CNPq, segundo levantamento feito pela Parent Science. Na divisão por grandes áreas, elas só eram metade ou a maioria nas áreas Sociais Aplicadas (50%), Humanas e Linguística (51,8%), Letras e Artes (60%). No recorte de raça/cor, quase 88,7% eram pesquisadores brancos, 6,2% pardos, 4,6% amarelos, 0,5% indígenas, e nenhum autodeclarado(a) preto ou preta.

Em 2001, quando cursou doutorado em História Social, Iraneide Soares da Silva, era a única mulher negra da turma de 21 estudantes. A própria experiência como pesquisadora e professora da pós-graduação na Universidade Estadual do Piauí (UESPI) exemplifica o “sumiço” das mulheres negras à medida que a graduação aumenta: “em um universo onde vamos encontrar dez mulheres, duas ou três apenas serão negras".

"A justificativa para alguns grupos, muitas vezes, é que nós não estamos lá porque não existem cientistas negras, e não param para analisar que o caminho que percorremos até chegar ao doutorado tem muito mais curvas”, destaca, citando a pressão por conta da maternidade, por exemplo, que é duplamente mais cobrado a mulheres negras, além da co-estratificação geográfica.

Atualmente, Iraneide é presidenta da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, a ABPN, criada no ano 2000 por um grupo de cientistas negros que se perceberam, de certo modo, excluídos de outros grupos. A associação hoje conta com mais de 5 mil pesquisadores associados.

"O crescimento do número de pesquisadoras negras coincide com a inclusão de políticas afirmativas na agenda pública dos últimos 20 anos. Uma legislação afirmativa, como a lei 10.639, fez com que conseguíssemos expressar uma produção bastante expressiva", destacou, se referindo à lei de 2003 que tornou obrigatória o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas a escolas do país, sendo elas públicas ou particulares.

O perfil do cientista brasileiro não mudou na visão de Iraneide, que classifica como “branca, masculina e idosa”. Para a pesquisadora, os lugares de maior reconhecimento no campo científico são pouco ocupados até mesmo pelas mulheres brancas, que não chegam lá por conta de múltiplas barreiras.

Para Iraneide Soares da Silva e Marcia Barbosa, as políticas afirmativas são o melhor caminho para reparar a falta de mulheres, principalmente as negras e as mães, na produção de conhecimento científico. Por meio de programas sérios que elas pretendem desconstruir estereótipos, que moldam o imaginário coletivo e pensar medidas compensatórias.

Marcia acredita que o Brasil pode aprender muito com ações desenvolvidas em outros países. Como secretária do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), vem trabalhando na ideia de um banco de dados global de ações afirmativas e, a partir deste levantamento, construir políticas específicas para cada universidade e realidade.

“Meninas na Ciência” quer mudar os números

A ausência de mulheres em salas de aula e laboratórios de física até era percebida, tanto na relação de colegas quanto de referências profissionais, mas foi um dia qualquer, em uma conferência de mulheres na física, que Carolina Brito, já então professora da Ufrgs, percebeu que algo estava bem errado. Longe de ter uma história romantizada sobre essa virada de chave, hoje ela mesmo conta que o que aconteceu em 2015 era bem previsível para quem vive em meio a fórmulas: “foram os números”, diz, se referindo aos dados sobre a disparidade de gênero que a chocaram pela primeira vez.

Neste ‘acordar’, Carolina logo embarcou em múltiplos movimentos dentro da academia com outras mulheres e meninas. Conheceu Meninas na Ciência logo que o projeto nasceu em 2013, a convite da também professora de Física da Ufrgs Daniela Pavani. Há uma década a dupla está à frente de uma longeva ação de extensão que não só aproxima meninas de escolas públicas das áreas de exatas como também apresenta a universidade pública como uma realidade possível para o futuro delas.

Os primeiros passos do ‘Meninas’ – como o projeto é carinhosamente chamado pelas integrantes – foram em 2013 com um edital do governo federal, sob posse da ex-presidenta Dilma Rousseff. A ideia era financiar ações pensadas no incentivo de mulheres nas ciências exatas, que englobam as áreas de física, matemática, química, computação e engenharias. A proposta pensada e escrita pela Daniela não era propriamente nova em aproximar as escolas da Ufrgs, já que isso já ocorria em projetos de extensão em outras áreas.

O inédito era o recorte de gênero em pelo menos duas camadas: discutir a ausência de mulheres nos espaços acadêmicos; e fazer isso nos corredores e prédios dominados por homens há décadas. O novo fervilhava até para o projeto, que ganhou modificações no decorrer da execução. No início tudo era meio experimental, lembra Carolina. “Mas percebemos muito rápido que não adiantava fazer só ações e não conhecer o campus. Então criamos uma área de pesquisa.”

Num primeiro momento, o ‘Meninas’ consistia em convidar alunos do ensino médio de escolas públicas para conhecer os espaços físicos dos prédios dos cursos, laboratórios, e dividir com os jovens as experiências e perspectivas em relação ao mercado de trabalho daquelas áreas; e, a partir destes encontros, construir relatórios, publicar artigos, etc. Ou seja, um outro braço nesta missão de tentar responder que muro era aquele entre as mulheres e as exatas, e como derrubá-lo.

Com o tempo o projeto foi agregando novas atividades como oficinas de robótica, física pura, astronomia, mudanças climáticas, roda de conversas sobre profissões, além de formação de professores. “Levantamos questões, mostramos os vieses que estão implícitos desde que as meninas nascem, e como é que isso é identificado”. O planejamento e a aplicação deste leque de ações têm o apoio de bolsistas, voluntárias dentro e fora da universidade e demais professores.

A coordenadora ressalta que a sustentabilidade do programa hoje se dá pelo apoio da comunidade acadêmica além dos editais que foram surgindo no decorrer dos anos, que financiaram o trabalho delas. No entanto, a ‘espinha dorsal’ de tudo ainda é Ufrgs, pontua Carolina Brito. “Além da boa vontade, a ciência tem que ter financiamento, senão você começa a precarizar o trabalho de mulheres.”

Na visão da professora, o projeto acompanhou uma mudança societal; se antes falar de feminismo nas exatas era ‘marginal’, hoje é comum ter interseccionalidades de gênero e raça em vários espaços acadêmicos nas exatas, como congressos. No entanto, ainda há entraves. “Não enxergamos nos números um crescimento muito grande de mulheres na área de exatas. Na nossa ‘casa’ não conseguimos ver um avanço numerológico”, coloca Carolina, se referindo a quantidade de docentes mulheres no curso de Física. “É um avanço cultural que não está se convertendo em número, e isso é um pouco frustrante.” Tudo isso indica que ainda há muito o que fazer.

Protótipo de programação de um robô feito por participantes do projeto | Foto: Maria Eduarda Fortes

As áreas de exatas e ciências da tecnologia são as que têm a menor presença de mulheres. Na outra outra ponta, o cenário também não é muito animador. Na saúde onde há maior presença feminina, mulheres são 70% da força de trabalho e 90% dos profissionais linha de frente na área da saúde. E mesmo assim, elas ocupam só 25% dos cargos de liderança, mostrou um levantamento da Women in Global Health Movement.

Essa distribuição pouco equilibrada sobrecarregou as pesquisadoras que conseguiram ascender. “O sistema cortou tanto as mulheres da carreira científica, especialmente as negras, que provocou uma sobrecarga”, lembra Carolina sobre a demanda de haver porta-vozes para frentes em defesa da representatividade em congressos, bancas de doutorado, etc.

Para orgulho da coordenadora, Laura Schwingel está neste caminho. Ela é graduanda de astrofísica desde 2022 e bolsista do Meninas na Ciência. “Meu primeiro interesse pela física surgiu vendo o filme ‘Mulheres além do tempo’, e pensei que queria ser que nem elas”, conta a estudante se referindo ao trio de matemáticas negras que trabalha na NASA e precisa provar dia a dia sua competência ante uma hierarquia branca e masculina.

O filme lançado em 2017 se passa em plena Guerra Fria onde Estados Unidos e União Soviética disputavam a supremacia na corrida espacial. “Eu fiquei pensando ‘será?’. É uma área em que não temos incentivo.” O apoio da família foi integral, mas perguntas como ‘Vai ter espaço pra mim?’ e ‘Vou conseguir emprego?’ seguem como sombras para a jovem de 20 anos que quer seguir na área de pesquisa científica.

Junto com a Marina Gonçalves, também graduanda de astrofísica, é bolsista no projeto Meninas na Ciência desde 2023. Em pouco tempo a dupla ganhou protagonismo e assumiu a frente de alguns projetos do guarda-chuva do Meninas, como o ‘Gurias, partiu Ufrgs’.

“A gente sempre gosta de apresentar a universidade mostrando a realidade que temos. Contamos o caso do assédio moral que tivemos em sala de aula, e como não soubemos o que fazer. Deixamos explícito que essas situações vão ocorrer, mas que estamos aqui para ajudá-las. Estamos aqui por elas”, conta Laura, mostrando que o apoio não termina com o ingresso de novas alunas nos cursos de exatas; ele vira maior, se transforma numa forte rede de acolhimento.

A Marina fez o mesmo caminho da Laura para chegar até o ‘Meninas na Ciência’. Mesmo confiante de que poderia gabaritar qualquer prova de física, como ocorria no Ensino Médio, outras questões preocuparam a jovem de 19 anos: “será que vou poder usar rosa? Ou vão me julgar, dizer que sou muito menininha para estar ali?”.

Laura e Marina acompanham com entusiasmo no listão do vestibular o número de novas mulheres em seu curso. A sala cheia no primeiro semestre é motivo de festa para as gurias. Mas não dura muito. “A turma é equilibrada no início do curso, entre mulheres e homens. Só que no decorrer elas acabam saindo, ficando para trás”, pontua Marina. “No episódio do assédio moral, eu cancelei a cadeira, e isso foi atrasando o curso porque ela trancava quase todas as outras disciplinas.”


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