Programa busca reeducar homens agressores de mulheres; veja como funciona

Programa busca reeducar homens agressores de mulheres; veja como funciona

Só em Porto Alegre, mais de dois mil homens já foram atendidos pelos Grupos Reflexivos de Gênero

Brenda Fernández e Camila Souza

publicidade

Ao passo que governo e entidades pensam no aprimoramento de medidas de prevenção e proteção a mulheres vítimas de violência, um outro debate surge e busca integrar uma rede de políticas para barrar a violência de gênero: a recuperação e a reeducação de homens agressores. 

Dezessete anos após a implementação da Lei Maria da Penha (Lei nº 13.984), uma alteração na sua legislação incluiu em 2020 um artigo que prevê a participação sigilosa de homens agressores em programas de recuperação e reeducação, seja por vínculo coletivo ou individual.

A advogada Gabriela Souza, que trabalha com foco no atendimento dos direitos das mulheres, destaca o caráter pedagógico dessa lei, que vai além da punição de agressores. “A Lei Maria da Penha se presta para educação. É educação para transformação social, ou seja, não é apenas divulgar notícias sobre a lei para que as mulheres denunciem, mas também criar mecanismos eficientes para que se mude a educação”, afirma.

Para ela, o foco não deve ser apenas educar mulheres para que saibam o que é violência doméstica, mas também incluir os homens, “que são educados através de uma cultura machista, misógina e sexista a odiar mulheres, para convidá-los a refletir sobre os aspectos de gênero”.

Nesse contexto, surgem os Grupos Reflexivos de Gênero, desenvolvido pelo Poder Judiciário do RS desde 2011. O programa recebe homens que se envolveram em situações de violência doméstica, familiar ou afetiva contra a mulher. Através de facilitadores voluntários, incluindo estudantes de Psicologia, que passam por uma formação específica para atuar nos encontros, os agressores são estimulados a refletir sobre os comportamentos masculinos que estimulam a violência de gênero.

Para a juíza corregedora da Coordenadoria Estadual das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça do RS, Taís Culau de Barros, o programa é a oportunidade ímpar de colocar homens agressores em um espaço de questionamento enquanto sujeitos de uma sociedade de opressão às mulheres. “Uma possibilidade de eles refletirem a respeito dos comportamentos violentos e das ideias de machismo que permearam, provavelmente, sua educação, fazendo com que eles naturalizassem esse tipo de comportamento”, explicou.

Dados do Observatório Estadual de Segurança Pública, da Secretaria de Segurança, mostram o registro de 45.616 boletins de ocorrência por violência consumada ou tentada contra mulheres entre janeiro e outubro deste ano. Ficam de fora as vítimas que não conseguem denunciar, seja por falta de oportunidade, de conhecimento, medo, ou por estarem longe de um local adequado para isso.   

 

“O objetivo principal é proteger a mulher, mas o que se viu é que com as medidas que inicialmente existiam, só de proteção à mulher, não estávamos conseguindo o resultado que temos agora com os grupos reflexivos que são baseados no homem. Eles diminuem a reincidência. Isso é uma possibilidade de resultado bem interessante: trabalhar com agressor e não só com a vítima”, apontou a magistrada. 

A psicóloga coordenadora do projeto Borboleta, Ivete Vargas, destaca a eficácia dos grupos para frear os índices de violência. “A gente tem bem claro que o homem que participa do grupo reflexivo tem menor probabilidade de se envolver novamente em violência de gênero. A reincidência fica abaixo de 5%.” 

Muitos começam a participar questionando o programa, mas após a conclusão, relatam o impacto em seus comportamentos. “Eles se sentem bem falando sobre eles, tendo um olhar de responsabilização. Tem situações que eles não reconheciam como violência até  participarem do grupo. Também dizem que nunca tiveram essa possibilidade de falar sobre suas emoções”, conta Ivete.

Paulo*, de 68 anos, concluiu sua participação no grupo e ressalta a importância da iniciativa. “Para mim, foi uma novidade. Eu nunca tinha participado de alguma coisa parecida. Mas desde o primeiro dia que vim aqui já me identifiquei com os assuntos e com a proposta do trabalho. Eu achei muito agradável”, comenta. 

“A espontaneidade de poder falar, dar nossa opinião”, cita o participante sobre os pontos altos do programa. Ele também destaca a confiança passada pela psicóloga como fator crucial para o resultado dos encontros: “a  tranquilidade que a doutora passa para nós, em cada um poder dar sua opinião. Isso aí é muito importante, né?” 

Quando questionado se indicaria o programa a outros homens, não hesita. “Acho que esse programa deve até ser ampliado, de uma forma que mais pessoas participem.”

Um programa pioneiro em Porto Alegre

No entanto, antes mesmo da brecha criada na legislação, o assunto já era pensado e aplicado em algumas comarcas brasileiras. Porto Alegre é considerada pioneira em buscar soluções para frear os altos índices de violência contra as mulheres, adotando a prática ainda em 2011. Projetos semelhantes, mas com o mesmo enfoque, no entanto, também já foram testados em Bento Gonçalves, por exemplo. 

O município da Serra foi um dos lugares em que Ivete esteve para pesquisar programas e ações de acolhimento voltados à auto responsabilização de homens em casos de violência. Mas não só. Em menos de um ano, a psicóloga, que já tinha experiência com atendimento a homens privados de liberdade, percorreu alguns estados e se debruçou a montar, do zero, um programa precursor na capital gaúcha.

“E aí eu começo a estudar o que que havia de estudos de gênero no país, quais eram as fundamentações teóricas de estudos de masculinidade, etc. Vou estudar e vou fundamentar esse trabalho ainda em 2011”, conta Ivete Vargas. O projeto piloto aconteceu no mesmo ano, com cinco homens. Dois deles concluíram. O pontapé inicial foi avaliado como um sucesso – tanto na concepção da especialista quanto dos relatos dos participantes. Até o momento, Ivete estima que mais de 2 mil homens já foram atendidos no programa. 

Atualmente, estão em andamento dois grupos reflexivos de gênero no projeto Borboleta. Um ocorre de forma presencial, e o outro online, orientado pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Os encontros presenciais acontecem no Foro Central de Porto Alegre, no bairro Praia de Belas.


Encontros contam com dinâmicas e espaços para os homens falarem | Foto: Ricardo Giusti

"Nós precisamos trabalhar com todos"

Fazer com que o homem se reconheça no papel de agressor e entenda a sua educação dentro de uma sociedade machista, sexista e racista, é para além da auto responsabilização, um caminho de prevenção, coloca Ivete Vargas. 

“Para você tirar uma carteira de motorista, precisa fazer toda uma formação. Eventualmente, se você tem muitos pontos na carteira, volta a fazer a formação. Acho que temos que pensar com essa mesma naturalidade a questão de gênero a violência de gênero. Para entender não como algo de punição, mas de reeducação”

“São pessoas que têm uma profissão que na sociedade são vistas como boas pessoas, né? É um tema que a gente precisa discutir. Por que a violência contra mulher está dentro desses ambientes de boas pessoas? No ambiente do lar onde a mulher deveria ser protegida? Que cultura é essa que o machismo está tão enraizado na sociedade que ele não não larga mão? Precisamos trabalhar com todos, e, sim, precisamos trabalhar com os homens”, frisa a psicóloga. 

Na mesma linha de pensamento, a advogada Gabriela Souza enfatiza a importância de discutir a questão de gênero antes de ser praticada a violência. “A reflexão de gênero deve cumprir essa lei que fala sobre educação em todos os âmbitos. Ou seja, devemos começar a refletir gênero assim que nascemos, porque, afinal de contas, é a chaga que a gente carrega desde que a gente nasce.” 

Ao avaliar o programa, doze anos depois do piloto, Ivete reconhece que o êxito do projeto vai muito além dos números e depoimentos positivos deixados pelos participantes. Ela lembra que hoje há uma estratégia de governo, no âmbito estadual e nacional, um grande guarda-chuva que estende a discussão do tema para escolas e outros espaços. 

“Precisamos ainda de verba sendo utilizada em programas de prevenção ao ciclo da violência para as mulheres”, coloca. “Às vezes a mulher não sai do ciclo de violência por uma questão de moradia, por uma questão de investimento em uma creche. Que ela saiba que ela vai sair, vai trabalhar, e vai voltar para pegar as crianças. Vai trazer para casa, em um ambiente seguro.”

Por isso, os grupos reflexivos precisam ser integrados a outras formas de prevenção e combate à violência. Para além das medidas protetivas e dos programas de reeducação, Gabriela também defende que o estímulo à participação das mulheres no mercado de trabalho é fundamental para o combate à violência. “O grupo reflexivo de gênero tem que ser um aliado, e não o personagem principal da defesa da mulher”, pontua. 

Como funcionam os Grupos Reflexivos de Gênero

Os Grupos Reflexivos de Gêneros já foram adotados em 42 comarcas gaúchas – 25% das 165 existentes no Estado. Há 19 comarcas habilitadas como Facilitadores de Grupos Reflexivos capacitados pelo CJUD – Centro de Formação e Desenvolvimento de Pessoas do Poder Judiciário do RS. (confira o mapa abaixo)

No ano passado, a medida ganhou apoio do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com uma recomendação para que os tribunais “instituam ou mantenham programas voltados à reflexão e responsabilização de agressores de violência doméstica e familiar”. O documento, assinado pelo ministro Luiz Fux, ditou orientações como o de tempo mínimo de oito sessões ou três meses para os encontros, e que exista uma triagem com os participantes. Leia o documento na íntegra neste link.

• Quem coordena os grupos:

Os grupos são coordenados pelo Juizado de Violência Doméstica e Familiar e pela Central Integrada de Alternativas Penais (CIAP), que recebe os homens encaminhados pela Vara de Execuções de Penas e Medidas Alternativas (VEPMA). Neste último caso, inclui pessoas que podem ter a condenação suspensa após a participação nos Grupos Reflexivos.

• Quais homens podem participar:

A participação de homens agressores em Grupos Reflexivos de Gênero pode ocorrer em diferentes momentos do processo. Ela pode ser determinada pelo(a) Juiz(a) como medida protetiva de urgência, condição para a concessão da liberdade (em caso de prisão em flagrante ou preventiva), ou em virtude de condenação criminal. 

Nesta última hipótese, além da pena corporal imposta, é determinada a frequência obrigatória do condenado ao grupo, como pena substitutiva, suspensão condicional da pena, ou durante a execução da pena. 

A participação no grupo também pode ter reflexos positivos em caso de sentença condenatória pois, a critério do(a) julgador(a), pode ensejar o seu reconhecimento quando da aplicação da pena.

• Como é a dinâmica: 

Há assuntos pré-definidos para uma abordagem em grupo com os integrantes. Essas discussões, mediadas pelos facilitadores, são feitas com a ajuda de materiais audiovisuais, como vídeos. Os encontros também contam com dinâmicas e espaços para os homens falarem. 

• Quanto tempo dura:

São no mínimo oito encontros, conforme resolução do CNJ que orienta o programa. Eles são semanais e presenciais, na maioria das vezes. Antes da pandemia, eram 12 encontros. 

• O que acontece se houver reincidência:

Após a conclusão dos oito encontros, o homem é acompanhado por um período de dois anos. Em caso dele voltar a cometer alguma agressão contra uma mulher, ele pode ser orientado a participar novamente dos grupos. 

Conheça as cidades que implementaram os Grupos Reflexivos de Gênero:

*Nome fictício


Mais Lidas

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895