Sobrecarregadas: a rotina exaustiva que está levando mulheres ao esgotamento mental

Sobrecarregadas: a rotina exaustiva que está levando mulheres ao esgotamento mental

Jornadas triplas de trabalho, sobrecarga doméstica e pressão estética causam depressão e ansiedade em milhares de brasileiras

Brenda Fernández e Camila Souza

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Elas estão esgotadas. Lidam diariamente com jornadas triplas de trabalho, sobrecarga doméstica e mudanças repentinas no comportamento social. Seis em cada 10 brasileiras convivem com diagnóstico de ansiedade. Um relatório produzido pela Think Olga, uma consultoria em equidade de gênero, mostrou que as mulheres ainda sentem os efeitos da pandemia na saúde mental mesmo após três anos do início da emergência sanitária. A situação ainda é mais preocupante entre as mulheres negras e as pertencentes às classes D e E com mais de 55 anos.

Isabelle Ribeiro, 29 anos, mulher branca, e uma vida que mudou radicalmente nos últimos três anos. O home office virou uma opção não pela flexibilidade, mas para driblar crises de pânico desencadeadas pela sociabilização. “Eu tive algumas crises de ansiedade que me deixaram em estado catatônico onde eu não conseguia falar e nem me mexer. Ficava só deitada, igual uma plantinha: parada, só respirando, existindo. Isso aconteceu mais de uma vez neste ano”, conta. 

Assim como quase metade das mulheres ouvidas pela pesquisa, a questão financeira passou a ser a maior preocupação da Isabelle, que é publicitária e, como autônoma, tem mais de um vínculo de trabalho. Após o início da pandemia, em março de 2020, ela foi diagnosticada com borderline, um transtorno de personalidade caracterizado pela instabilidade e hipersensibilidade nos relacionamentos interpessoais. As crises de ansiedade também se intensificaram. 

“Hoje como PJ [Pessoa Jurídica], eu tenho uma responsabilidade enorme com meu trabalho. Se eu não fizer, ninguém vai fazer. Se eu não trabalho, também não recebo.” A pressão ganha outras camadas: “já é uma sobrecarga ser mulher e ainda empreendedora, trabalhar sozinha e fazer todos os ‘corres’ por conta própria. É uma sobrecarga muito grande e que me causa muito transtorno.” 

Para mostrar como a insegurança se apresenta de forma distinta, Isabelle conta de uma situação que já experienciou com seu namorado - que também teve a saúde mental bastante abalada na pandemia. “Se não consigo pagar uma conta, se vejo que o dinheiro tá apertado, eu vou passar muito mal e pensar em 300 maneiras para conseguir aquele dinheiro. Já o meu namorado é muito mais tranquilo. Não significa que ele não se preocupe, mas não a ponto de ficar doente por causa disso”, conta. 

Jornadas de trabalho intermináveis

A psicóloga Priscila Sanches é enfática: o home office é uma visão, querendo ou não, romantizada. “Existe um fato que as pessoas não falam: o home office faz borrar muito as fronteiras entre o lazer, o descanso e o trabalho”, pontua, lembrando que algumas mulheres vão chegar a acumular o trabalho doméstico, o trabalho remunerado, a maternidade e até o cuidado de terceiros (família e pessoas com quem possuem relacionamento estável). “Essa mulher não descansa. O local que deveria ser um local de ‘cheguei em casa e posso relaxar’ não é mais isso porque ela continua em casa e terá mil e uma funções para lidar.” 

Sobre o recorte de gênero, diz: “imagino que os homens vivam de forma diferente, né? Afinal, a casa pode ser um lugar de trabalho, mas não de um trabalho doméstico, não de uma paternidade - que pode ser opcional e não obrigatória, como é a maternidade.” Um dado da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, feita em 2022, confirma essa discrepância: as mulheres gastam 21,4 horas da semana em tarefas domésticas e do cuidado, enquanto os homens usam 11 horas.

Junto com uma jornada de trabalho interminável, é somada, também, a preocupação com as finanças, principalmente quando as mulheres são responsáveis pela estrutura familiar. “O estudo dos filhos, o alimento, tudo passa a ser responsabilidade dessas mulheres. À medida que elas têm essa responsabilidade, vão encarar as finanças, também, com muita ansiedade e autocobrança”, diz Priscila.

Nesse contexto, em busca da renda extra, muitas acabam acumulando trabalhos, o que contribui ainda mais para aumentar a exaustão. “Hoje em dia, as mulheres também são muito provedoras, além de continuarem sendo cuidadoras”, afirma.

Pressão estética: um desafio a mais

Mas não é só a questão financeira e familiar que deixa as mulheres esgotadas. O que também aumenta a sobrecarga no público feminino é a pressão estética, que cria uma busca exaustiva por um padrão de beleza inalcançável. Priscila lembra que os casos de transtornos alimentares são majoritariamente femininos e conta que a maioria de suas pacientes têm questões com autoimagem. “Se enquadrar nesse padrão significa ser amada, ser vista, ser atraente. Significa até usufruir de melhores oportunidades de trabalho. A gente sente que precisa se enquadrar pra ter mais sucesso.” 

Enquanto os produtos culturais criam um ideal de corpo e rosto perfeito, as mulheres distantes desse padrão experimentam a exclusão e a invisibilidade social, o que traz consequências principalmente para a saúde mental. “A pressão estética traz adoecimento, como transtornos alimentares. A compulsão alimentar pode surgir também como uma válvula de escape para ansiedade ou estresse”, afirma.

Conforme a pesquisa da Think Olga, sete em cada 10 pessoas diagnosticadas com depressão ou ansiedade no país são mulheres. Isso faz com que seja esse o público mais suscetível a desenvolver vícios não saudáveis. “Todo o excesso, tudo que tira as pessoas dessa percepção vai ser desejado no momento em que elas só vivem estresse, quando a rotina não tem nenhum tipo de prazer”, diz Priscila. De acordo com a especialista, a compulsão alimentar e o consumo excessivo de álcool e drogas, por exemplo, acontecem como uma válvula de escape em meio a uma rotina repleta de sofrimento e de sobrecarga.

Considerando o recorte racial, o cenário se torna ainda mais desafiador para mulheres negras que, além de enfrentar todas as barreiras comuns para o público feminino, precisam lidar, também, com o racismo e com a falta de oportunidades. De acordo com um estudo da FGV, as mulheres são as principais ou únicas provedoras em 38% dos lares brasileiros, sendo a maioria negra e pertencente às classes D e E. “É essa a realidade de subempregos, de mulheres tentando sobreviver com pouco, de mulheres que chefiam famílias com muitos filhos, tendo que arcar sozinha com a responsabilidade, porque existe, também, um abandono paterno muito naturalizado na nossa sociedade.”

Além de ser o público mais suscetível a adoecer mentalmente, as mulheres negras são as que menos têm acesso à psicoterapia, que seria uma das melhores alternativas de tratamento. Isso porque este espaço ainda é considerado “elitizado”, possuindo alto custo e se tornando inviável para quem não sabe se terá dinheiro para a comida no dia seguinte. A demanda é muito acima do que o SUS pode dar conta, comenta Priscila. “E quando as mulheres negras ascendem socialmente e vão buscar a psicoterapia, elas têm várias questões não só de ansiedade, mas especialmente de autoestima, porque além da misoginia, o racismo massacra a autoestima dessas mulheres.”

Sinais para identificar sintomas de esgotamento mental

A sensação de exaustão e sobrecarga pode atingir qualquer pessoa, de qualquer idade. É também comum que sintomas que indicam um quadro de saúde mental fragilizada sejam confundidos e até mesmo naturalizados. A psicóloga Priscila Sanches listou cinco sinais que podem apontar para um esgotamento mental.

- Excessos: todo e qualquer excesso indica que algo está errado. Esse termômetro pode ser aplicado tanto ao consumo frequente de álcool – que também funciona como uma rota de fuga para problemas – quanto na alimentação. Priscila lembra que este tipo de comportamento proporciona para a pessoa momentos de relaxamento e ‘deslocamento’ da realidade, mas que são momentâneos. 

- Alteração no sono: qualquer mudança radical no sono não é comum. Seja a dificuldade de dormir, que pode ser gerada por preocupações constantes, ou sono em excesso, tem que buscar uma ajuda clínica. “A ansiedade faz muito isso com as pessoas: é uma dificuldade de dormir extrema, um pensamento caótico que não para, ela pensa muito no futuro, não consegue se focar no presente”, pontua a psicóloga.

- Apatia: a exaustão e a sobrecarga podem afetar a motivação nas pequenas coisas da vida. Qualquer sinal de desesperança e desânimo, no presente ou no futuro, são sinais de alerta. 

- Mudanças no apetite: extremos no apetite também são sinais importantes para cuidar. Quando a pessoa está com esgotamento mental, ela pode ter a perda do apetite ou desenvolver uma compulsão alimentar.

- Isolamento: é importante ficar atento aos sinais de isolamento. Uma pessoa que gostava de sair de casa e interagir socialmente começa a ficar reclusa, por exemplo, pode estar com a saúde mental prejudicada.


Alterações no sono, apatia e mudanças no apetite são sinais que indicam esgotamento mental | Foto: Ricardo Giusti

E quem cuida das mulheres?

Afinal, quem cuida das mulheres sobrecarregadas? Na maioria das vezes outras mulheres. A rede de apoio feminina é de longe um dos espaços mais seguros para um primeiro acolhimento, seja ele para dar suporte emocional ou uma ‘mão’ nas múltiplas tarefas. Esse refúgio muitas vezes é uma amiga, uma irmã, a mãe ou uma vizinha. 

Um dos grandes aliados da saúde mental é a psicoterapia. No entanto, mesmo com o crescimento de iniciativas sociais de atendimentos de baixo custo e também os oferecidos no Sistema Único de Saúde (SUS), o acesso ao serviço encara barreiras. Visto que as mulheres estão tentando dar conta de várias tarefas ao mesmo tempo, em que momento ela conseguirá olhar para si? 

Se o acesso à psicoterapia já possui desafio ao público feminino no geral, para as mulheres negras e as de baixa renda o caminho é mais longo, lembra a psicóloga. “Saúde mental também é sobre igualdade social, sobre distribuição de renda, sobre o combate a esses preconceitos. Senão estamos tapando o sol com a peneira”, aponta Priscila, que também defende que os profissionais tenham uma leitura real e humanizada da realidade em que mulheres vivem. 

De acordo com o relatório da Think Olga, 78% das mulheres responderam que não fazem terapia, psicoterapia ou análise. Quase metade deste grupo fora dos consultórios diz que pesquisa e se informa sobre saúde mental por conta própria, e 29% diz que não tem dinheiro ou acha que o serviço custa muito caro. Dentre as práticas que elas mais recorrem quando sentem que saúde emocional não vai bem estão: fazer atividades físicas, praticar religião/espiritualidade, passar tempo com a família e amigos, cuidar da aparência e alimentação e ficar perto da natureza.

A psicóloga ressalta a importância de tratar as crianças de forma mais igualitária, dividindo tarefas domésticas, por exemplo, como parte da solução desse problema complexo. Ela pontua que o fato de as mulheres estarem em uma sobrecarga adoecedora mostra que uma grande parte dos homens não está cumprindo com suas responsabilidades. “Não existe solução fácil, porque a gente está falando de uma estrutura social. Então, eu acho que a solução parte de conscientizar toda uma sociedade, especialmente na criação de meninas e meninos”, avalia.


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