As edições comemorativas do Correio do Povo

As edições comemorativas do Correio do Povo

Por Daniel Marcilio

Correio do Povo

Linotipistas na oficina de composição do Correio do Povo

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O que significa comemorar um aniversário? Parece uma pergunta simples, mas esconde certas complexidades que não surgem à primeira vista. Trata-se de um evento esperado, previsto com antecedência: mais um ano que se acumula. Porém, o ato de celebrar sempre introduz algo de novo. Não se resume a uma simples repetição. Uma comemoração de aniversário envolve uma espécie de ritual de lembrança. É uma ocasião que põe em evidência inquietações, problemáticas sobre como o passado é relembrado, como as recordações são construídas e por quais motivos certos acontecimentos são lembrados enquanto outros caem no esquecimento. 

Essas questões formaram a base para a minha pesquisa de mestrado, desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Comunicação e Informação na Ufrgs. Na tentativa de estudar as relações entre memória e jornalismo, analisei a situação em que o passado desponta com força: o jornal comemorando a sua existência, colocando-se em lugar de destaque.

No jornalismo, afinal de contas, as datas redondas são momentos ideais para a realização de textos rememorativos, ainda mais quando o tema a ser pautado é a trajetória do veículo de comunicação. Existe uma expectativa em torno da efeméride do aniversário, que se reveste de uma forte carga emocional da memória. O impresso é, ao mesmo tempo, o autor e o intérprete autorizado de sua própria memória, em um jogo de interpretação e reinterpretação. A previsibilidade nas edições comemorativas de aniversário proporciona uma sensação de controle sob o tempo. Elas apaziguam a tensão provocada pelo acúmulo, pela desordem do passado, e são, portanto, uma forma de retornar ao início, de ritualizar o ato fundacional. 

O aniversário de um jornal, na realidade, é uma abstração, um marco temporal um tanto arbitrário. O surgimento do periódico poderia ter ocorrido em um dia ou mês diferentes e, de qualquer jeito, seria celebrado da mesma forma. Embora o fato tenha efetivamente ocorrido – a data, em si, não é uma ficção – a memória sobre o que ocorreu é constituída por um emaranhado de significados. 

Nesse sentido, não foi por acaso que a escolha do meu objeto de pesquisa recaiu no Correio do Povo: é o jornal mais antigo ainda em circulação em Porto Alegre, se forem desconsiderados os anos em que permaneceu fechado, de 1984 a 1986. Seu nascimento, em 1895, só foi possível graças aos esforços conjuntos de três fundadores: o médico Mário Totta (1874-1947), o gráfico e jornalista José Paulino de Azurenha (1860-1909) e, principalmente, o jornalista sergipano Francisco Antonio Vieira Caldas Júnior (1868 -1913). Desde o início, o jornal tentava se apresentar ao público como um impresso desvinculado de quaisquer interesses político-partidários. Ele surgia com o propósito explícito de renovar a imprensa da época. Porto Alegre, no final do século XIX, crescia motivada por uma visão de progresso. A modernidade urbana, um fenômeno que se alastrava pelo mundo, impulsionou a emergência de uma ordem racional, cosmopolita. Foi um momento marcado pelas primeiras grandes obras de reestruturação: a construção de largas avenidas, a criação de serviços industriais e a expansão do sistema de transporte com os bondes elétricos. A mudança na configuração da capital gaúcha naquele contexto histórico, portanto, também incentivou a construção de um novo ideal de jornal impresso, que pretendia substituir opiniões por fatos. Com as condições técnicas cada vez mais consolidadas para a produção em larga escala, a notícia transformava-se em um bem de consumo.

Assim, quando foi criado, o Correio do Povo estava no que se poderia considerar como a vanguarda do jornalismo gaúcho. Diferente das outras publicações jornalísticas da época, ele nasceu e se consolidou ao adotar uma lógica mercantil, renovando constantemente seu parque gráfico e reinvestindo os lucros na produção. E este grande acontecimento inaugural é acionado a cada ano, em um movimento que busca unir o passado e o presente.

Ao longo da história do Correio do Povo, as edições de aniversário tornaram-se, então, uma tradição. A memória sobre o passado do jornal, ao ser articulado com o presente, ganhou novos contornos com o passar do tempo. As condições de produção e de distribuição do impresso são diferentes a cada década, envolvendo especificidades distintas e relações de poder que se modificam. Conforme o período, foi possível perceber durante a minha pesquisa nos documentos que o jornal utilizou-se de distintas estratégias narrativas para comemorar seu nascimento, evocando valores tradicionais na edição de dez anos, celebrando antigos funcionários na comemoração do cinquentenário e, por fim, elaborando seu papel como observador da história na celebração dos oitenta anos. As constantes ressignificações revelaram ainda que a figura de Caldas Júnior, o fundador do Correio do Povo, é o elemento simbólico central. À semelhança de uma autobiografia, a comemoração de aniversário sugere que o ponto de partida definiu todo o desenrolar da história, ou melhor, o começo implicou em um fim determinado, na sequência de acontecimentos que não poderiam ter se desenvolvido de outra forma.

O aniversário de jornal traz à tona, portanto, toda a problemática da relação do tempo no jornalismo. Por isso a necessidade de destrinchar e entender o que representa uma celebração de aniversário, em especial quando se leva em consideração a trajetória de um impresso centenário, como é o Correio do Povo. Nessas edições comemorativas, a construção de uma memória sobre si mesmo é um passo decisivo para que o jornalismo consiga reforçar continuamente certo consenso sobre sua própria relevância.

*Daniel Marcilio é jornalista e historiador, mestre em Ciências da Comunicação pela Ufrgs


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DESDE 1º DE OUTUBRO 1895