Paixão pelo amadorismo

Paixão pelo amadorismo

O retorno ao caos na saída de voos pós-pandemia revela uma curiosa dinâmica comportamental.

Marcello Beltrand

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Como e por que o indivíduo renuncia a um hábito bom em troca de um pior? Sim, o mundo está careca de saber que a cultura (hábitos) desarranja qualquer planejamento. Um exemplo foi o enterro de um raro benefício da pandemia: a organização na saída dos voos de avião.

Vale lembrar que a saída dos passageiros − até março de 2020 − era uma pequena demonstração de irracionalidade. Tão logo o avião atracava no finger (corredor suspenso que leva o passageiro da aeronave até o solo firme do aeroporto) e suas rodas eram travadas, ninguém esperava a chefe dos comissários anunciar qualquer coisa. Incrivelmente os passageiros de todas as fileiras ficavam em pé, num inútil movimento, porque assim ficarão imóveis por vários minutos até a evacuação se iniciar.

No modo pandemia, as companhias aéreas, num lapso de racionalidade, ordenaram o caos e adotaram a lúcida autorização parcial de saída: as primeiras cinco filas, depois mais cinco e, assim, sucessivamente até as últimas cinco. Foi incrível a paz que passou a reinar nos aviões. Os brasileiros demonstravam sua aptidão a um padrão de funcionamento mais lógico e menos estressante.

Agora, tudo retrocedeu. No modo pós-pandemia, ocorre uma cena bizarra. A comissária, dando adeus às boas práticas, anuncia novo formato. Primeiro, diz que as filas de um a cinco estão autorizadas a sair. Em seguida, incrivelmente, se escuta algo do tipo: “Agora podem sair os passageiros das fileiras 6 até 31”. Ou seja, todos!
E retorna a sinfonia de ombros, braços, cotovelos, mãos e dedos se entrelaçando por cima da cabeça, por sobre o ombro de tudo e todos, que vai do interminável abre e fecha dos compartimentos superiores de bagagens até um balé desnecessário de apertos, acotovelamentos, maus humores e, quiçá, maus odores.

O desenvolvimento e a manutenção de bons hábitos exigem processos complexos que envolvem psicologia e teoria comportamental. Nesse retrocesso, temos duas lógicas possíveis: a atração fatal do passageiro pelo velho modelo ou, pior, a omissão da liderança, no caso do comissário e da companhia, em exercer o poder organizador num ambiente controlado.

Essa volta a zero diz menos sobre filas e nos conta mais sobre a cultura gerencial e a mente do brasileiro. Uma espécie de parábola sobre o amor ao amadorismo por vezes vigente no mundo corporativo.


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