Um novo paradigma da liberdade de expressão

Um novo paradigma da liberdade de expressão

Por André Malta Martins*

Correio do Povo

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Costumo ver a história através da imagem de dois rios que correm paralelamente, um na superfície e outro no subsolo, integrando aquilo que Walter Benjamin batizou de continuum, ou seja, o fluxo dos acontecimentos naturais e humanos ao longo dos séculos. Nessa analogia, enquanto o rio que corre na superfície está sujeito às oscilações das correntes e das marés, vistas aqui como os eventos e ações que ora retardam, interrompem ou aceleram o progresso das águas ao talante de governos, religiões, guerras, tragédias, conquistas e descobertas, o outro rio que corre nos subterrâneos cumpre livremente o seu curso em direção ao destino da humanidade que, espero e torço, seja o de harmonia, de fartura e de felicidade, uma espécie de apogeu do processo civilizatório.

Nem é preciso voltar muitas décadas para perceber os sinais deste processo no qual algumas liberdades individuais conquistadas a duras penas durante séculos e séculos de lutas contra os poderes dos regimes totalitários tiveram que ser refreadas em nome de bens ou valores comparativa e juridicamente superiores, como a segurança, a saúde, o meio ambiente, a paz e a própria democracia, vez ou outra ameaçados em virtude das mudanças de comportamento e das inovações científicas e tecnológicas.

Para promover a integridade física e a segurança, por exemplo, a liberdade de ir e vir teve que ceder espaço à obrigatoriedade de cintos, capacetes e cadeirinhas, assim como a privacidade foi em certa medida neutralizada pela grande disseminação das câmeras de vídeo. E o que dizer da contenção da livre iniciativa e do livre comércio ante a proibição da venda de animais silvestres e do abate de árvores, a fim de assegurar um ecossistema protegido e preservado?

O mesmo ocorre com a liberdade de expressão, outrora compatível com manifestações de cunho racista, machista, xenófobo e homofóbico, vem sendo revista para o bem da dignidade da pessoa humana que alicerça desde o combate ao bullying nas escolas até a prevenção dos crimes praticados na Internet. Sem dúvida alguma, é devido ao imenso poder de reverberação da Internet e das redes sociais que um novo paradigma da liberdade de expressão precisa ser amplamente debatido. Assim já o fazem países como Estados Unidos e Alemanha, para que a impossibilidade de censura não se torne uma licença ao discurso de ódio, à propagação deliberada de notícias falsas e à prática de delitos contra a honra e contra o estado de direito, sob o risco de se ter violada a institucionalidade e esgarçado o tecido social, fomentando rebeliões e confrontos que poderiam justificar até mesmo uma ruptura democrática em nome do restabelecimento da ordem pública, o que poderia trazer a reboque, aí sim, a supressão definitiva de direitos e de garantias individuais.

*Advogado


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