É o teu guri

É o teu guri

Lembras da pandemia, Mirica? Só sobrevivi à doença por tua causa, eu acredito nisso. Foste tu que me deu força (...)

Paulo Mendes

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Sou eu, mãezinha, o teu guri o Paulinho, lembra? Ah, Mirica, faz tanto tempo desde a última vez que nos vimos. Eu recordo sempre de ti, todos os dias da minha vida, porque ela só foi possível para mim em função de ti. E olha que não me pariste. Quem me pariu foi a Anália, que não pode me criar por ser tão jovem. Tu foste a Cacequi me buscar e me levou para a Vila Rica. Mais filho, e tu foste ainda mais mãe, porque o fez por decisão, por gosto. Como tens passado, mãezinha? Estão te tratando bem aí? Creio que sim, tu sempre foste tão simples, calma, vendo tudo de um jeito positivo. Qualquer canto te serve, não é, Mirica? Tu me ensinaste a ser assim, por isso te agradeço. Quantas vezes te agradeci, Mirica, nem sei mais, mas parece que sempre é pouco. 

Aprendi a rir do mundo contigo. Tu dizias, “temos que brincar, se não a vida fica amarga demais, difícil de ser vivida”. Tu contavas causos, criava, inventava, por isso eu estou aqui, também contando histórias que os eleitores tanto gostam. Eu estou feliz, Mirica, sabia? Estou, sabe por quê? Porque muitas pessoas gostam do meu trabalho, mandam mensagens, se identificam, isso não tem preço, mãe. Trabalho, você sabe, ao lado de tantos colegas queridos que me respeitam, que me ajudam. Tudo isso tu me ensinou, a ser amigo dos amigos, ser parceiro, ser solidário, brincar, zoar, mas estar sempre ao lado para o que der e vier. Eles confiam em mim. 

Lembras da pandemia, Mirica? Só sobrevivi à doença por tua causa, eu acredito nisso. Foste tu que me deu força quando, numa madrugada, achei que ia sucumbir. E, no auge na minha exaustão, da falta de ar, te vi na minha frente me mandando viver. E, quando vieram os enfermeiros verificar os sinais, tirar o sangue, meus números haviam melhorado e, dali para frente, comecei a me recuperar. Ah, Mirica, tu nunca me deixa solito, não é mesmo? Que seria de mim sem a tua presença? Agora que não estás mais aqui é quando mais te sinto junto a mim. Como pode isso? 

Mas sinto saudade. Do teu cheiro, da tua voz, dos teus olhos gateados, da tua mão cheia de calos acariciando e penteando meus cabelos antes de ir para a escola. E do teu sorriso. Tu rias como um clarão de alvorada, franca e sincera. Daquele teu jeito de reconhecer um ‘calavera’, um falso. Das tuas previsões sempre certeiras do tempo e da tua delicadeza campeira de dizer que me queria por perto. Guardo umas fotos nossas, como aquela do dia de minha Primeira Comunhão, quando te vi chorando pela primeira vez, tu que nem era tão religiosa assim. 

Hoje, queria voltar no tempo, Mirica. Fazer doce de leite no tacho de bronze, te ajudar a tirar leite na mangueira. Beijar-te e abraçar, o que fiz muito pouco. Eu era um guri, mãezinha, depois adolescente, parecia que o mundo corria, passava depressa. Agora, peço perdão, peço desculpa, na época, não sabia o que sei hoje. Tu me perdoas, mãezinha? Ah, sei que sim, teu coração é tão doce, como aquelas compotas que fazíamos em serões escutando música no rádio. Tenho a pretensão de dizer que fomos felizes, Mirica, tu não achas? Me espere, Mirica, qualquer dia apareço por aí. Mas um detalhe, quero que venhas me buscar de novo. mãezinha. Para que eu não tenha medo e sinta outra a vez tua mão me carregando. 

 


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