A música da alma

A música da alma

Hoje, dormirei apaziguado e sereno, talvez sonhando com um pesqueiro de rio, deixando me invadir esta música que vem de lá

Paulo Mendes

Sol da fronteira gaúcha

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Tenho um carinho enorme e muita gratidão pelos fotógrafos do Correio do Povo, os atuais e os que já passaram pelo jornal, além dos colaboradores de fora, que sempre estão me amadrinhando nesta gineteada artística, as colunas semanais aqui, no Correio Rural, desde 2009. Sei que corro o perigo de esquecer alguém, mas tudo começa com Roberto Santos, um mestre, autor da capa de meu primeiro livro, lá nos idos de 2011. Dos da casa, devo citar Ricardo Giusti, Mauro Schaefer e Fabiano do Amaral. Afora os profissionais que deixaram a empresa, mas muito contribuíram, como Alina Souza. Entre os colaboradores assíduos estão Leonid Streliaev e Eduardo Rocha. Há vários outros artistas da imagem, mas estes são os principais. Vezenquando, também me arrisco em algumas fotos deste nosso rincão, assim como o poeta e compositor Alex Silveira, que registra flagrantes campeiros e nos envia. Eu digo sempre que uma imagem desses fotógrafos vale mil palavras. Vocês não concordam?

Dias atrás, numa segunda-feira, me deparei com esta foto do sol no meio da cerca de tábuas, possivelmente, num lugar da Fronteira. Ela traz a marca de Eduardo Rocha, que um dia, em Livramento, conheceu Roberto Santos e decidiu ser fotógrafo. Foi uma decisão acertada, pois Edu arrebatou a sensibilidade de Roberto para captar as minúcias do campo, com suas peculiaridades e belezas. Os detalhes e peculiaridades. Na hora, me veio a emoção da imagem de uma pauta musical, que prende o sol.
Uma fotografia que dispensa maiores comentários. Ela por si só é uma crônica, é um poema sobre o mundo campesino, mas também sobre a musicalidade do viver, a finitude terrestre, nossa precariedade e grandeza humanas que se apresentam num amanhecer ou num final de tarde. O limiar enigmático do tempo.

Seu Turíbio disse-me, certa vez, enquanto saboreava seu aperitivo de canha com bitter, ao final de uma tarde quente de verão, oitavado no bolicho lá de casa, que ninguém se suicida depois de olhar o sol sangrando o dia, ou num poente de luz e sombras. Era um cliente assíduo, vizinho, e todos os dias estava na venda, trocando ideias comigo, um guri, um terneiro de sobreano recém relampeando a guampa. Hoje, dou razão àquele desconhecido sábio, que sabia traduzir de forma simples certas idiossincrasias do mundo das soledades rurais. É lindo mesmo sentir o cheiro da vida amanhecendo, assim como o dia dando adeus à terra, com a promessa de horas depois estar de volta para tudo recomeçar.

Daqui onde vivo, recordo todos os dias da minha infância lá na Vila Rica. Sei que se aproxima cada vez mais o dia da minha partida, mas olhar as belezas da natureza deste Rio Grande de São Pedro, onde nasci e me criei, me acalma e me redime. Quero enxergar, quanto mais Deus me permitir, esses sóis presos na pauta dos alambrados, das mangueiras de pedra e nas porteiras desses fundões de campo. Escuto, ao longe, uma melodia de cordeona, depois uma milonga de guitarras pampeanas e o canto de um gaúcho de goela afinada. Ah, meus amigos e minhas amigas, leitores e leitoras de tanto tempo, eu sou assim, nostálgico. Hoje, dormirei apaziguado e sereno, talvez sonhando com um pesqueiro de rio, deixando me invadir esta música que vem de lá, dos escaninhos secretos da minha saudade.


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