Assobios de outubro

Assobios de outubro

Ah, as primaveras eram assim, os bem-te-vis se equilibravam trêmulos nas ancas dos pingos, as cordeonas sapecavam vaneirões (...)

Paulo Mendes

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As taquareiras começavam a assobiar em outubro, faziam orquestração encompridando os ventos que vinham brincar nos braços do povoado. As laranjeiras se vestiam de passarinho só para emitir trinares e cantos e queriam partir, empenadas, junto com torcaças e sabiás. Uma dessas primaveras me pegou lendo “Lendas do Sul”, enquanto, ao longe, alguns churrasqueavam debaixo de ramadas. Houve outra que chegou debaixo de uma enxurrada de setembro. Ah, foram tantas, mas eram sempre doces e macias como aquele lenço maragato que ganhei ainda pequeno. Nunca soube onde foi parar, mas nunca esqueci o toque de seda que parecia névoa, um carinho translúcido. Os amores são assim também, às vezes a gente os esquece, não sabe onde se esconderam, mas jamais esquecemos como tocavam nosso coração. 

A Vila Rica parecia que se modificava na primavera, porque as coisas adquiriam outros nomes e sentidos. Tudo se agigantava. Antes de ir para a escola, experimentávamos um pouco de loção e talco Cashmere Bouquet escondido das mães. Às vezes, um pouco de brilhantina no cabelo. As meninas guardavam pétalas perfumadas entre as folhas dos cadernos. Olhavam de um jeito diferente, entre o lânguido e o sonhador. Os cabelos longos cor de trigo, cor de picumã, cor de fogo, esvoaçantes... Tudo ficava lindo naquele período febril e etéreo. No céu, via as nuvens fazerem desenhos românticos. Todo canto era maior, era um gorjeio, porque vinha com sedução no primitivismo da palavra, e tudo virava criança que solta pandorgas coloridas numa manhã de domingo. 

O senhor e a senhora estão captando o que estou dizendo? Ah, as primaveras eram assim, os bem-te-vis se equilibravam trêmulos nas ancas dos pingos, as cordeonas sapecavam vaneirões de desencilhas e havia uma prece enfeitada na manhã orvalhada. Era uma estação de alívio, depois que havíamos transposto os ventarrões gélidos das invernias, a tropeada nefasta das noites longas. Agora, eram manhãs prateadas de caniço ao ombro, os bichos se cumprimentavam ao sol do meio-dia, como irmãos especiais, enquanto as velhas cochichavam nos ouvidos umas das outras coisas que não escutavam mas pressentiam e riam a mais não morrer. Ou viver? Vida, isso crescia e abarrotava jiraus, prateleiras, leitos e transbordava para a busca de outros tempos, de outras vidas, quando os campos deste Sul eram mais verdes e os índios charruas dominavam essas plagas. 

Ah, essas primaveras eram diferentes dessas de agora, que já me encontram de cenho franzido, de braços cansados, empurrando esta cadeira de balanço. Quase não vejo mais nada e como um cusco mantenho o olfato aguçado, sentindo o cheiro das abelhas e camoatins que voam debaixo da amoreira. Mateio solito, penso e repenso, sinto e escrevo. E de inopino me esbarra uma ideia ligeira, a de que desejo morrer numa primavera, que seja clara, perfumada e doce. Não quero que seja uma tarde cinza de agosto. Passarinho não alça voo no vácuo da madrugada. Irei montado em pelo num pingo manso, de trote macio, garboso, envolto na nuvem do tempo que veio me buscar. E lá, quando abrirem a cancela celestial, chegarei com olhar sereno, assobiando uma milonga de outubro. 


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