Coração de pandorga

Coração de pandorga

Te transforma num piá de arrabalde, junta teus pedaços e voa, enfrenta teu destino (...) livre ao vento, como uma pandorga solta no ar

Paulo Mendes

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“Quando as crianças estiverem, aparentemente,
falando sozinhas, não interrompa essa prosa. Elas 
estão ajustando contas e tramando roteiros com
o anjo da guarda.” (Luiz Coronel)


Lá vai uma pandorga colorida ziguezagueando no ar, com o rabicho serpenteando no céu da Vila Rica. Vejo a linda manhã primaveril, a estrada de chão batido do Cerrito, a Esquina Maboni e a gurizada aos gritos, no campinho das taquareiras, exibindo suas criações de todos os tamanhos, cores, formatos, com desenhos e umas até em formas de cabeças de bichos. “Puxa a linha Zé Galinha”, “Esta é caborteira, feitio do Juca Moreira”, “A preta não paga vale, tem a mão do Beto Salles”, “Quem vem não se arrepende, beleza Luizinho Mendes”. Era assim, aquela espécie de festival de brincadeiras e versos infantis, ao lado da estrada real. Quando o Gemada passava, trazendo o pessoal da cidade, seu Nei, o motorista do velho ônibus do Posto de Sementes, buzinava e os passageiros abanavam das janelas. A gente aproveitava, fazíamos com que subissem e dávamos carretel para que voassem naquele infinito azul como andorinhas de pano. 

Ah, meus amigos e minhas amigas, o Dia das Crianças tá chegando e me olho no espelho outra vez. Vejo um homem de cabelos brancos, rosto enrugado, os olhos sem mais o brilho de outrora, as mãos cheias de sulcos, os braços com cicatrizes. Doem os joelhos, os músculos e nervos, a espinha nem se dobra mais. Cadê aquele menino de calças curtas, chapéu preto, que caminhava feliz nos domingos de manhã em direção à sanga com o caniço de taquara nos ombros? Onde foram parar a sanga, os lambaris prateados, os aguapés floridos, os campos amarelados de malmequeres? Será que ainda existe a carretinha de lata, a bola de couro, o bilboquê? Por que, meu Deus? Hoje sei, não devia nunca ter me apartado deles, aquelas coisas tão simples e ingênuas que faziam a minha alegria.

Meus passos trôpegos, meus braços cansados, minha cabeça dolorida, todos fraquejam e se param soltos, cada um de um lado, sem ânimo e desorientados. O tempo, este verdugo, não perdoa, nos maltrata, nos arrebata sem nenhum constrangimento, sem pedir licença nem dar trégua, por ser filho ingrato do infortúnio. Tento resistir bravamente, mas parece impossível, um tremor já campeia os nervos à espreita, pronto a me devorar lentamente. Volte Zé Galinha, dê teu braço Beto Salles, me ajude Juquinha, traz água Luizinho Mendes, “que eu já venho sufocado no balanço deste baio, uma espora sem roseta e a outra sem papagaio”. 

O que somos meus amigos, o que viemos fazer aqui neste mundo, o que fizemos para sofrer tanto? Meu coração não aguenta olhar para essas fotografias onde apareço rodeado de amigos que já se foram para outra dimensão sem deixar rastro. Ficou este vazio, este soluço preso na garganta. Olha, isso rolando pela minha cara não é lágrima, é apenas um cisco trazido pela aragem. Vai coração, voa, volta lá de onde partiste, toma este céu nublado de poluição, sobe além das nuvens, volta a ser guri outra vez, te transforma num piá de arrabalde e revive feliz, junta teus pedaços e voa, enfrenta teu destino de coração livre ao vento, como uma pandorga solta no ar.


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