Dois Borges e eu

Dois Borges e eu

Jorge Luis Borges e Luiz Carlos Borges. Dois homens, dois artistas que moldaram em nós o barro do amor à terra, à literatura e à música

Paulo Mendes

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Um Borges caminha pelas ruas de Buenos Aires pensando em punhais, espelhos e tigres. Outro Borges sobe ao palco em Santo Ângelo, junto com o irmão, para cantar músicas regionalistas. Caminham ambos os Borges, o Jorge Luis e o Luiz Carlos, rumo à eternidade de si mesmos, mas também, de portenhos e gaúchos. Nunca se conheceram, mas carregam a alma dos arrabaldes, dos homens de destinos traçados muito antes de serem concebidos. Poderiam viver em casa, mas decidiram mirar o horizonte. Este mesmo horizonte do passado onde surgem nuvens de lembranças andarilhas. Aquelas mesmas que repontam para dentro do peito nossas infâncias com seus ossos em tropilha. Para um, eram edifícios, bibliotecas; para outro, eram mangueiras, açudes, piquetes e um campo onde invernava sonhos. Para o argentino, a vida era um livro em mensagens de letras antigas; para o guri brasileiro e sulino, viver parecia uma brincadeira com os ossos descarnados que repontava. 

Um virou escritor, seu destino desde que nasceu. O outro, atou a alma a uma cordeona. Os dois Borges artistas, um argentino, outro brasileiro, mestres para sempre adorados e admirados porque foram a cara, a coroa e a esfinge de um Pampa desfigurado pelo tempo e pela invenção dele mesmo. Para um, o peão campeiro Florêncio Guerra afia a faca para matar seu cavalo, porque quem não serve para nada não merece andar no mundo. Florêncio mata o cavalo e a si mesmo, como um centauro sangrado, um por cima do outro. Para o outro Borges, Dahlmann também empunha a faca com firmeza para abrir a porta e conhecer o Sul profundo, a faca que, ao contrário de Florêncio, não saberá manejar, e sai à planície para morrer. Mas também para viver na literatura, na arte e no imaginário desse povo meridional. 

Noutras andanças toco as reses de meus sonhos. Há à minha frente um corredor feito esperança. Sim, algumas vezes sou tropeiro e, na maioria, sou tropa. Mas sempre guardo meus caminhos na lembrança. Mas, atenção, “Manoel Flores vai morrer, isso é moeda corrente, morrer é um desses costumes, que todo mundo consente...” Um pensa nos clássicos, na antiguidade, rodeado de códices e imagens. O outro não é espelho nem reflexo, é a síntese da sua própria história, o universo da música que aprendeu a amar desde a tenra idade ainda nas Missões. Tão diferentes, tão separados pelo rio, mas amigos, aos irmãos de arte não há contrabando. 

Jorge Luis Borges e Luiz Carlos Borges. Dois homens, dois artistas que moldaram em nós o barro do amor à terra, à literatura e à música. Viveram distantes, mas eram irmãos na delicadeza dos espíritos de divinos arteiros, serelepes que saem nas noites mortas a cooptar corações para serem comparsas, admiradores do belo, das letras e das notas musicais. Fui um admirador de ambos, dois Borges e eu, um guri criado à beira de uma estrada real, dentro de um bolicho, atrás de balcão, bebendo palavras e escutando cordeonas. Por isso, virei fã dos dois. Por onde andar com esses meus olhos de vidros quebrados, vou chorar, vou chorar... Porque depois dos olhos quebrados, quem há de os consertar? 

A vida é mais que um galope e vencer não é importante. Abrirei a porta e enxergarei a imensidão...


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