Dom Desidério vai embora

Dom Desidério vai embora

O dom Dério, que definhava havia anos, quis morrer justamente neste dia, enquanto declamava um poema de T.S. Eliot.

Paulo Mendes

publicidade

O inverno daquele ano parecia que não queria nos deixar. Depois das incontáveis geadas, da neve que caiu num sábado ao entardecer, das garoas tristes nas tardes curtas, das noites longas e geladas, o setembro se espichava assoprado por um vento matreiro, que se infiltrava pelas frinchas das velhas tábuas do bolicho – que haviam servido anos atrás de armazéns na antiga Charqueada de São João do Barro Preto – e vinha cravar seu punhal de vidro em nossos rostos cansados. “Vai-te embora, excomungado”, imprecava seu Turíbio, num canto, enquanto bebericava lentamente um liso de canha, enrolado num bichará desbotado, com vários furos e fiapos de lã se soltando no assoalho carcomido da venda beira de estrada. O vento ladino não foi. Quem se foi, na verdade, de vez, foi seu Desidério Américo de Magalhães Correia e Albuquerque, o dom Dério, que definhava havia anos, quis morrer justamente neste dia, enquanto declamava um poema de T.S. Eliot.

O velho Dério tinha sido estancieiro para os lados da Fronteira. Viúvo e já doente, viera em busca de uns parentes que jamais encontrou. Estabelecera-se numa pequena chácara bem cuidada na estrada do Cerrito, lugar de boa aguada, sombra, pomar, horta, criava umas ovelhas, tinha vaca de leite, um lindo cavalo zaino e dois cachorros lebreiros. Tinha caseiro e uma empregada que lhe fazia a comida, lavava roupa e todo o serviço de casa. Mas com o passar do tempo, o velho perdera o viço, a doença ia lentamente tirando-lhe os movimentos, o dinheiro que guardava debaixo do colchão foi terminando. O que não acabava nunca era sua verve de contador de causos, de conhecedor de lugares e caminhos, era um homem bastante culto, com faculdade, cursos, e muito viajado, sabia falar espanhol e inglês. Muitos o chamavam de professor, o que realmente era, outros de dom, de doutor, era uma figura muito respeitada.

Quando dom Dério apeava do cavalo Pé de Chuva, que ficava atado nas tramas, debaixo dos cinamomos, o pessoal se ajeitava para ouvir causos de lugares distantes por onde o homem andara quando jovem, ouvir versos de poetas ali desconhecidos, mas que todos escutavam com silêncio e respeito. Ele sabia de cor trechos de contos de Simões Lopes Neto, de Machado de Assis, versos campeiros de Aureliano de Figueiredo Pinto, versos modernos de Carlos Drummond de Andrade e de gente do estrangeiro. Num Natal, ganhei de presente uma edição bilíngue de “Martin Fierro”, de José Hernández, que me acompanha até hoje e moldou meu gosto pelo regionalismo.

Nesta tarde de ventarrão, dom Dério chegou com olhos de vidro, numa charrete puxada por um tordilho, e seu caseiro. Arrastando as alpargatas recitou seu último poema. De certa forma, foi premonitório: “O que chamamos de começo, costuma ser o fim/ E fazer um fim é fazer um começo/ O fim é o lugar de onde começamos.” E parou, já sem vida, ao cair sobre as tábuas velhas. Muito tempo depois, cursando a faculdade de Comunicação Social da UFSM vim descobrir a autoria dos versos. E dei-lhe razão totalmente, porque quanto mais nos aproximamos do fim, é sinal de que vamos recomeçar. Uma nova jornada só começa, exatamente no momento em que uma outra termina. Assim como essas ‘Campereadas’.


Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895