Gemada e o teco-teco

Gemada e o teco-teco

Hoje sigo sonhando, sigo voando, sigo lembrando do velho Gemada, dos aviões, dos amigos que deixei pelo caminho

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Ainda hoje, quando fecho os olhos nessas noites de invernias, ouço barulhos, roncos de motores, apitos, buzinas que marcaram minha infância naquela tão longínqua Vila Rica. Era apenas um guri, e o senhor e a senhora sabem que, nessa idade, geralmente, pelos nossos internos, não existe lugar para tristezas ou prantos, mesmo que a vida seja dura. Eu orvalhava madrugadas, pescava lambaris prateados, sorrateiros e trovadores, laçava touros brabos em coxilhas verdejantes, desafiava fantasmas na calada da escuridão. E conversava com as nuvens. Era um imagético. Solitário e campeiro, proseava solito e muitas vezes com companheiros inventados. E, nas pescarias de sanga, sempre fazia uma trova de improviso para qualquer peixe que fisgava. “Não tenha medo de mim, bagrezinho sofredor, eu sou um piá teatino, me criei no corredor, mas pra fisgar sou ligeiro, tenho sangue pescador...” 

Às vezes, ou quase sempre, eu respondia por eles: “Tenha pena de mim, tu tem mais o que comer, tem o campo e tua casa, e um mundo pra conhecer, e eu, coitado de mim, só tenho o rio pra viver...” Quando terminava a trova já devolvia o peixe pra sanga, açude ou rio. “Cadê os peixes?”, perguntava dona Mirica, “tu é ruim de caniço, hein, guri”. Não me importava com a mãe, achava que os peixinhos tinham que aproveitar a vida deles, como eu. Por isso pescava sozinho, pra ninguém ouvir meus versos, tolos e simplórios, nem rirem de um campesino que tinha pena de peixe. E olha que era bom de pescaria. 

Felizmente sempre tive facilidade em fazer amizades. No início, em nosso bolicho, com todos os clientes, gente humilde e sofrida. Depois na escola, sempre rodeado de amigos. Mais tarde, no quartel, na faculdade, e seguiu nos empregos e trabalhos. Isso me enche de orgulho, porque sem amigos, vocês sabem, não somos ninguém. Hoje, quero apresentar a vocês meu novo amigo, o conterrâneo Tailor Diniz, jornalista dos buenos, um escritor respeitado e sensível, e ainda artista plástico, que encontrei por meio desta coluna “Campereada”. A imagem que ilustra este texto é dele. A obra me trouxe duas lembranças dos tempos que andava de calca curta e pés descalços, abanando pro mundo, pedindo rédea e cancha. 

A primeira, o Amarelão, o Gemada, como era chamado o ônibus que pegava para ir para o colégio. Ele pertencia ao governo do Estado, mais precisamente à Estação Experimental, o Posto de Sementes como diziam. A segunda, um teco-teco lá no alto, porque havia um campo de pouso ali perto. Eu gostava de andar no velho ônibus, mas sonhava um dia viajar de avião, conhecer outras realidades, outras culturas, porém era apenas um pequeno bolicheiro. Um dia, seu Turíbio me disse: “Sonho sonhado muitas noites vira verdade.” Eu acreditei. Lia e sonhava. Estudava e sonhava. Hoje sigo sonhando, sigo voando, sigo lembrando do velho Gemada, dos aviões, dos amigos que deixei pelo caminho, dos tantos que foram tropear noutras dimensões. Mas tudo que a vida tira ela devolve em dobro. Como o Tailor, que não conheci lá, mas encontrei agora. Porque a arte nos aproxima de Deus e faz a gente enxergar ônibus amarelo na esquina e, lá no infinito do céu, um bando de teco-tecos sonhadores. 


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