Intolerância, faça silêncio, que precisamos viver

Intolerância, faça silêncio, que precisamos viver

Paulo Mendes

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Na noite do dia 14 de outubro, uma sexta-feira, o ator, cantor, compositor e multi-instrumentista Jorge Mario da Silva, artisticamente conhecido como Seu Jorge, fazia um show no clube Grêmio Náutico União (GNU), em Porto Alegre, quando, já na parte final do espetáculo, foi vítima do mais covarde preconceito racial e de uma nojenta intolerância com a raça negra. Na plateia estavam pessoas brancas, em grande parte de classe média, que gritaram “uhh, uhh, uhh”, numa tosca imitação de macaco, e ofensas mesmo, diretas e de uma discriminação repugnante, como “negro preguiçoso” e “negro vagabundo”. Tudo após ele chamar para se apresentar, como convidado, o menino prodígio do cavaquinho Pedrinho da Serrinha e, ainda, fazer uma defesa do movimento negro e uma critica à redução da maioridade penal. Depois de ouvir os insultos, Seu Jorge, então, decide não fazer o tradicional bis, volta ao palco e se despede com um “Mais amor” e “Fiquem bem”. 

Nesta famigerada noite, uma lágrima se formou no olho do artista e escorregou por seu rosto. Antes de cair no chão, essa lágrima foi se juntando a outras. Enveredou em direção à Vila Cruzeiro, onde passou pelos casebres de trabalhadores pretos, maltratados todos os dias pela sociedade sectária e hipócrita. Depois seguiu em direção ao morro Santa Tereza, viu um bando de guris pobres e negros espancados covardemente por policiais militares, entre eles, um que era pobre e preto também. E Deus? Deus, lá do alto de sua magnitude, via tudo, mas por alguma razão, até aqui desconhecida, não fazia nada. Só olhava. 

Como eu, que passei a vida inteira vendo isso tudo e nunca fiz nada. Achava que não era comigo, afinal sou jornalista, branco, tenho origem europeia, casa, trabalho e carro na garagem. Os negros que resolvam seus problemas, que eu já os tenho bastante. Talvez seja isso que Deus tenha pensado. Tenho tanta coisa pra resolver, guerras, fome, inundações, secas, e ainda vou me envolver em problemas por causa da cor da pele? Ah, vão se lixar. Deve ter sido isso que Deus pensou. Ou não? Não sei. Mas imagino que sim, porque a intolerância cresce, a discriminação aumenta, o preconceito se expande em todos os rincões do país e ninguém faz nada. Nem eu. Nem Deus. Ninguém. 

Uma lágrima se formou no olho do artista e escorregou por seu rosto. Antes de cair no chão, essa lágrima foi se juntando a outras. Foto: Paulo Mendes / Obra de Jaume Plensa / CP

Nem a diretoria do Clube Grêmio Náutico União. Até parece a música “Romance do Pala Velho”, do Noel Guarany: “Fui dar parte ao comissário, ficou pra segunda-feira/ Me levaram na conversa e se foi a semana inteira...” A diretoria enrolou, a Polícia Civil enrolou, e o caso seguirá o destino de outros tantos. Ou seja, nada. Como sempre. Por isso este texto, por isso a voz que hoje solto depois de me calar por tanto tempo. Talvez seja ouvida em algum lugar, talvez outras vozes se somem e venham juntas, fazendo um coro. Torço que o barulho seja reverberado em algum lugar importante e, de fato, algo de concreto seja feito. Que a lágrima de Seu Jorge possa virar um riacho, depois um rio e, finalmente, atingir e descansar no mar. 

Esta lágrima já ultrapassou o tempo e a memória. Ela saiu das vilas de Porto Alegre, andou pelas favelas do Complexo do Alemão, da Maré, da Rocinha, no Rio de Janeiro, perambulou pelo Viaduto do Chá, em São Paulo, por Minas, pelo Nordeste, pelo Norte, por todo o Brasil. Pulou o muro do tempo, visitou o Quilombo dos Palmares e se encharcou no rosto de Zumbi. E se plasmou na cara apavorada dos Lanceiros Negros, durante a Revolução Farroupilha, entregues à morte em troca de benefícios e vergonhosas negociatas nem um pouco republicanas. 

Viaje, negra lágrima do descaminho, lágrima que inunda este Brasil miscigenado e, mesmo assim, segue preconceituoso e tosco, elitista, onde a classe média se considera rica e, por isso, deve ser, em sua reles opinião, privilegiada. Serpenteia, querida lágrima, se avolume e volte. Traga as dores, os gritos, os pedidos, os pleitos, as pautas e demandas dessa gente sofrida, gente que trabalha de sol a sol nas cidades e campos do país. Negros, índios, imigrantes e todos os pobres. Os que mesmo não sendo pobres são expurgados e xingados porque são pretos ou índios. Transforme-se, lágrima de sangue, suor e medo, num vendaval que lave de uma vez por todas essas ignorâncias de nossa terra. Saravá, lágrima de divina força! Antes, diga a eles: “Intolerância, faça silêncio, que precisamos viver...” 


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