Lá e aqui, aqui e lá

Lá e aqui, aqui e lá

Caminho molhando meus passos pela Riachuelo nesses aguaceiros de julho, depois dobro na Caldas Júnior, antes de começar mais um dia de trabalho

Paulo Mendes

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Caminho molhando meus passos pela Riachuelo nesses aguaceiros de julho, depois dobro na Caldas Júnior, antes de começar mais um dia de trabalho. Enxergo, lá no fim da rua, o muro, o rio, os campos e as matarias distantes, o céu chumbado de um cinza entristecido. Neste momento bate uma vontade férrea de saber da minha gente, daqueles que ainda esperam por mim pelos pátios, pelos oitões de rancho, para uma trova, para uma conversa comprida de pescaria, para um causo de açude, para um mate com bolinho de chuva. Como estarão os que ainda ficaram, os que ainda não se foram de tiro para as campereadas do além da vida, e os que largaram as rédeas soltas sobre a grama forquilha e, zum, se mandaram para nunca mais voltar? 

Eu vim embora para sobreviver. Eu me bandeei para poder escrever aqui neste jornal onde aprendi a ler, que é bem mais que um órgão de imprensa, é um símbolo da comunicação desta terra. Perguntam-me: há quanto tempo estás no Correio do Povo? Respondo: desde sempre. Parece mesmo que sempre estive nesta redação centenária, que sempre andei por esses corredores tão amigos, que sempre usei este elevador histórico. Quando era jovem, até pensei em andar pelo mundo, mas depois que entrei por aquela porta, lá embaixo, tive a certeza que queria ficar aqui. Tive diversas oportunidades e convites para me ir, mas decidi ficar. O Correio já passou por tantas direções, tantos projetos, mas para mim ele será sempre o jornal com que eu posso me comunicar com o povo do campo, da terra, a gauchada simples. Para mim, isso basta. Agradeço e sinto um orgulho imenso de fazer parte dessa história tão rica. 

Quando vi o outro lado do rio, me enxerguei na Vila Rica, ainda menino em nosso bolicho, enrolando fumo em rolo nas páginas lidas e relidas do antigo CP. Eu lia as notícias em jornais velhos dezenas de vezes e guardava, bem escondidas, as edições do caderno cultural. Nelas, tive contato com a poesia gauchesca, com o regionalismo. Nas tardes quentes de janeiro, me deitava no carnal de um pelego para sestear, com um copo de água fresca, lia poemas, contos e pensava: nada mais é preciso na vida para ser feliz, sombra, água, um pelego e uma boa história para ler. Logo depois estava inventando jornais junto com meu irmão Luiz, contando causos engraçados, provocando risadas em nós e naquela gente humilde, trabalhadora e esperançosa. 

Ah, a vida, tão curta e dolorosamente linda. Com o passar dos dias, do tempo, vamos ficando velhos e voltamos ao princípio, a ser crianças de novo. Aqui, agora, me vejo lá. E lá é aqui. Em 2020 quase morri, após contrair Covid-19. Mas sobrevivi para fazer tantas coisas que ainda não havia feito, completar projetos que estavam pela metade. Voltei à vida porque ainda não era minha hora. Porque adoro viver, queria aproveitar mais um pouco. Como dizia seu Turíbio ao ser perguntado do que mais gostava na vida: “Viver”. 
Não estou mais lá, mas estou aqui. É como se estivesse lá e aqui ao mesmo tempo. Se ficasse lá, certamente não estaria aqui, mas estando aqui posso estar, hoje, em qualquer lugar. Gosto de camperear pelas palavras e sabia que a Vila Rica era apenas um lugar e o mundo inteiro. E que onde estiver serei sempre o bolicheiro da Vila Rica, o contador de causos.


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