Lá nas taquareiras

Lá nas taquareiras

Naquela época tu eras tão ávido por conhecimento, por viver, fazer amizades, tinhas um brilho efusivo em teu olhar (...)

Paulo Mendes

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Ficaram pedaços de mim em todos os cantos da velha Chácara dos Eucaliptos, na Vila Rica, sempre tão verdejante, com seu amanhecer cheiroso e o por do sol de um vermelho ensanguentado. Sinto isso a cada vez que vou lá. Sei que o tempo passa, que a cada novo dia somos iguais e diferentes, mas não tem jeito, somos aquilo que nos moldam no barro infantil do passado, na argilosa terra da criança que teima em grudar na alma fugidia, apegada que é no coração. Vamos conhecendo outros lugares, conhecendo tanta gente, nos reescrevemos, viramos outros por fora, mas por dentro ainda mantemos o guri de calça curta que caminha para a sanga num domingo de manhã com seu caniço de taquara nos ombros. Ah, gurizito campeiro, estou te vendo de novo, tu e teu bornal de lona, onde levas um naco de biscoito com chimia, dois tijolinhos e uma garrafa de café com leite gelado. E muitos sonhos. 

Quantos sonhos... Alguns tu conseguiste realizar, mas os outros ficaram pelas coivaras, pela terra lavrada, pelos matos nativos, pelas lavouras de soja que foram lentamente tomando conta do rincão. Eu te vejo agora correndo atrás das preás junto com teu cachorro Cacique na várzea do fundo do campo, ao lado da sanga, perto da vertente. O cusco via uma lebre e corria sofregamente atrás, mas não tinha pernas. Como tu, guri, que pensava em tantas coisas, mas não tinha como alcançá-las, eras apenas um piá carroceiro, entregador de ranchos do armazém, entregador de lenha e leite. Mas olha, te parabenizo xiruzinho meu amigo, tu foste corajoso, não te mixaste para as adversidades naturais. Tu levantavas cedo, ajudavas tua mãe a tirar o leite, inverno e verão, sempre alegre e satisfeito, depois te preparavas para pegar o Gemada e ir para a cidade estudar. 

Agora te vejo junto com outras crianças na parada do ônibus, rindo, contando causos do bolicho. Naquela época tu eras tão ávido por conhecimento, por viver, fazer amizades, tinhas um brilho efusivo em teu olhar de gurizinho de campanha. E depois, concentrado nas palavras dos professores, raciocinando, planejando, aprendendo, escrevendo com o lápis sempre bem apontado por tua faquinha de prata. Um dia, a professora Dilcéa riu quando todos usavam o apontador e tu aquela xerenguinha que ganhaste de teu padrinho. Mas ficou quieta, ela que era tua amiga, te compreendia e há poucos anos foi na praça da Vila Rica, quando lançaste teu primeiro livro, e te dizer: “Sempre confiei em ti, meu querido aluno.” 

Volto para a Vila Rica e o revejo. Enxergo o galpãozinho de tábuas e com fogo de chão, ao lado dos cinamomos onde ele sentava com os peões para matear aos finais de tarde, depois de encerrar os terneiros e alimentar a bicharada naquelas friagens de junho, julho e agosto. Ah, e por detrás da taquareiras, os campos se abriam em quadras e quadras de campos, aqueles que nunca foram teus, mas pareciam, pelo olhar que tu depositavas neles. Debaixo das taquareiras, sobre os pelegos, sesteava, dormia e sonhava. Antes de me ir, vou sentar aqui e lembrar como eram doces aqueles dias, sem ter este amargo de hoje que trago na boca. Pensar nas coisas que queria, no que poderia ter sido e não foi. Entrou um cisco no olho e cresceu um cerro no peito, enquanto pela garganta escorre um gosto salobro e temporão...


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