Netinho e o mocotó

Netinho e o mocotó

Nessas ocasiões, a velha senhora negra contava ao neto episódios da vida campeira que levara o velho Epaminondas Neto

Paulo Mendes

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Sentado na mesa de um restaurante do Mercado Público de Porto Alegre, Netinho degusta o almoço no início da tarde de uma sexta-feira cinzenta, típica de junho. Pela porta enxerga o movimento frenético de pedestres que passam apressados pelo Largo Glênio Peres. Sempre que o inverno se aproxima e a temperatura baixa, o jovem estudante de Direito da UFRGS costuma ir ao Centro Histórico, depois no Mercado, onde compra erva-mate, queijo, peixe e, no final da jornada, almoça um prato de mocotó acompanhado de uma taça de vinho tinto. Faz isso desde que começou a faculdade. Tem enorme orgulho de ser negro, morador do Morro da Cruz e frequentar, graças à Lei de Cotas, a antiga Universidade de Direito, naquele prédio por onde já esteve Getúlio Vargas e outros tantos vultos. Tem orgulho também do Mercado, erguido pelos seus ancestrais escravos. 

Quando guri, Netinho era levado pela mãe, nas férias, a visitar a avó, siá Tonha, numa casinha simples perto do Cemitério da Vila Rica. Nessas ocasiões, a velha senhora negra contava ao neto episódios da vida campeira que levara o velho Epaminondas Neto, o tropeiro, domador e capataz. “Era um carrapato no lombo do bagual, não caía de jeito nenhum, parecia grudado”, ria a vovó Tonha. Eles haviam se conhecido numas carreiradas de fim de semana, numa cancha do finado Maneco Terra, no Espinilho Grande. Namoraram poucos meses e se casaram. Neto, por essa época, estava começando a administrar estâncias, queria largar a vida de tropeiro, dormir ao relento, a bruta atividade de quebrar queixo de potro, as quebraduras dos braços. E assim foi. “Era disputado pelos fazendeiros, um homem de grande conhecimento, embora nunca tenha estudado, só sabia assinar o nome.” 

Quando chama o garçon e pede a conta, recorda que a avó sempre contava-lhe sobre as aptidões do avô Neto. E uma de suas especialidades era a arte de cozinhar, principalmente pratos da culinária campeira com influência africana. Um de seus favoritos era o mocotó, que fazia devagar, cozinhando lentamente legumes, o bucho, o feijão vermelho e a pata de boi. Também gostava de preparar um espinhaço de ovelha ensopado, carreteiro de charque e tantos outros. Sem falar nos doces, arroz doce, ambrosia e mogango com leite, peradas, doces de leite que fazia num velho tacho de cobre, que a avó mantinha pendurado na parede da cozinha. 

Netinho ganhara o nome do avô, que por sua vez era admirador do general Netto, da Revolução Farroupilha. “Grande chefe, peleador e honrado. Sua tropa de lanceiros negros era imbatível em combates a campo aberto”, costumava destacar vó Tonha. “Bem diferente daquele miserável do David Canabarro, que traiu nosso povo em Porongos”. Nesta tarde tinha uma conta a acertar, era como o avô, gostava de reivindicar o que lhe era seu por direito. “Foi um dos primeiros a ter carteira assinada nas fazendas”, lembrava a avó. Juntou as sacolas, a mochila da faculdade e, mais à frente, enxergou uma multidão bem no meio do Mercado. Puxou do bolso uma moeda e atirou no meio do círculo do chão. Pediu paz, fartura e prosperidade. Depois seguiu feliz em direção à Praça XV, saboreando, ainda, aquele gosto de mocotó.


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