O agosto do Gateado

O agosto do Gateado

O Gateado não sabe, mas pressente que, assim como a estância, ele chegou ao fim. (...) Este será o último agosto do velho cavalo.

Paulo Mendes

publicidade

Agora estava ali, parado, ainda encilhado, debaixo de uma árvore, naquela sombra gelada de agosto. O mês se encaminhava para o fim, como ele, o cavalo sem nome, pois o chamavam simplesmente de “Gateado”. Havia sido um bom cavalo de lida, desde potro. Não dera nenhum corcoveio, fora dócil na doma, e começou a trabalhar. Quando novo, isso já faz uns 20 e tantos anos, tinha sido usado nas lidas mais brabas, apartes de mangueira, tropeadas, tiros de laço, andara até em rodeio, por ser manso, bom de rédeas e de pata. A peonada disputava a chance de sentar os arreios no seu lombo. Num ano foi até o cavalo do patrão, antes dele comprar um filho de um afamado sangue Crioulo que ganhara prêmios de morfologia e função em Esteio. Para o Gateado, de certa forma, pouco importava quem o montasse. A vantagem é que o patrão pouco saía para o campo e quando campereava era bem ligeiro. 

E agora sentia que as coisas haviam mudado. O patrão morrera de Covid-19 no ano passado e os herdeiros decidiram não seguir com a pecuária. A maior parte vivia longe ali, da Fronteira, portanto, entendiam melhor arrendar a terra para lavoura de soja. Era a nova realidade do Pampa, ia lentamente se transformando num grande lavourão. “Vivemos num mundo capitalista, não tem volta”, diziam pelos galpões os amigos do patrão, o veterinário, o advogado e outros. O bioma, outrora bastante preservado, com cervos, pássaros e nhandus, e agora a bicharada silvestre quase desaparecida, com a possibilidade de sumir por completo. O capataz tinha dito aos peões que na semana passada partiram para tentar a sorte na cidade: “Está escasseando pessoas que acreditam na pecuária, a maioria prefere viver de rendas, sem preocupação como clima, com a chuva, com as secas, com os temporais. Prefere ficar mateando, na varanda, sem se preocupar se a vaca perdeu o terneiro, sem problemas com a aftosa, se a gerada queimou as pastagens, se o novilho atolou no banhado. Opta apenas para ir no início do mês ao banco e por a mão no arrendamento.” 

Olhe, meu amigo e minha amiga, o desânimo do Gateado. Acaba de fazer sua última campereada, repontando quase mil cabeças de gado que estão sendo transportadas em caminhões boiadeiros para outra propriedade nas Missões. O Gateado não sabe, mas pressente que, assim como a estância, ele chegou ao fim. Os cavalos mais novos foram vendidos junto com o gado, mas o Gateado ficará solito até a chegada do caminhão do frigorífico de Pelotas. Este será o último agosto do velho cavalo. A peonada, pesarosa, nem olha pra ele e, o capataz, por vezes, seca os olhos com o dorso da mão preta e calosa. 

Na vida, tudo tem seu início, meio e o fim. O renomado compositor Alex Silveira, que trabalha com negócios rurais desde 1992 na região de São Gabriel, garante que a pecuária não morrerá no Rio Grande do Sul. Tomara amigo Alex, tomara. Nossa história surge com o ciclo do couro, com a chegada nessas plagas do gado vacum e dos cavalos. O gado serviu de alimento, de divisas e empurrou nossa economia quando o Estado nascia. E o cavalo serviu de transporte, foi essencial na guerra e na própria formação do gaúcho. Torcerei para que sempre berre um touro na grimpa de uma coxilha e um campeiro possa erguer a majestosa bandeira gaúcha entonado no lombo de um gateado. 


Mais Lidas





Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895