Os trilhos da vida

Os trilhos da vida

Pensei que pudesse, em algum momento, deixar minha terra e beliscar a sorte numa cidade maior (...)

Paulo Mendes

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Sempre nas noites frias nos recolhíamos cedo, depois da janta. Na caminha de ferro, cobria meu corpo franzino com o velho poncho furado, com a cabeça debruçada no travesseiro de penas de pato e de galinha, de fronha feita com os sacos de farinha de trigo. Firmava o ouvido e devagar, lentamente, ouvia ao longe o barulho característico do trem. Vinha aumentando aquele som agudo do apito da locomotiva. A quantos quilômetros de distância estava? Nunca soube. Talvez no Abacatu, depois, mais perto, em São João do Barro Preto. Finalmente chegava perto de nossa casa e ficava contando os vagões. Após passar no corte, era o contrário, o tic-tac nos dormentes se distanciava até sossegar na Estação da Vila Rica. Quando silenciava, eu adormecia. 

Ah, os trens, os trilhos, os vagões de carga, de passageiros, uma história. A linha era de Santa Maria em direção a Marcelino Ramos e vice-versa. Um dia subi no trem e fui visitar meus primos em Porto Alegre. Vi, boquiaberto, o movimento frenético das ruas, os arranha-céus, aquele rio enorme no qual a Capital se debruçava alegre e, talvez por isso, deram-lhe o nome. Pensei que pudesse, em algum momento, deixar minha terra e beliscar a sorte numa cidade maior, onde tivesse a chance de contar tudo o que havia ouvido lá onde crescera, ao lado dos deserdados da sorte, peões de estância, changueiros, empregados por dia, lavadeiras, chinas que se deitavam para fora, dos sem esperança, dos que têm as mãos calejadas, os que não têm futuro e nem nunca terão. E minha escrita, quem sabe, ajudaria essa gente a ter uma vida mais digna. 

Voltei e jurei que seria jornalista. Havia aprendido a ler no velho jornal que minha mãe, dona Mirica, enrolava o fumo em rolo que vendia no nosso bolicho. Separava o suplemento “Bric-a-Brac da Vida”, com poemas e contos. No Correio do Povo, descobri que em Santa Maria existia um curso de Comunicação Social. Estudei sem recursos, à luz de velas e lampião, usei livros antigos, descartados, escutava no rádio programas educativos. O pai e a mãe me incentivavam. Seu Turíbio desencorajava: “Fique aqui, pobre é pobre”. Respondia: “Se não conseguir, fico e serei feliz aqui. Mas, e se não tentar e me arrepender?” Passei no vestibular e peguei o trem, eu e minha alma. Durante a faculdade, trabalhei até em supermercado e motel. Depois de formado, fui para Caxias do Sul e, mais tarde, para a Capital, no jornal que me inspirou a escrever. Por uma conjunção de acontecimentos, virei escritor e jornalista satisfeito com o tão pouco que faço, algo tão humilde, mas que é imenso para os que gostam de ler. 

Ah, a literatura, todas as artes... Sem elas não conseguiríamos viver. Dizem que sou um autor regionalista, mas acho que isso que é apenas um rótulo. Simplesmente utilizo a linguagem que aprendi e falar de sua aldeia é ser universal. Quando fiz mestrado na Ufrgs, no curso de Letras, área de Literatura Brasileira, defendi com orgulho uma dissertação sobre o poeta Aureliano Figueiredo Pinto, que virou livro. A gauchesca entrava na academia no início dos anos 1990. O guri bolicheiro, o carroceiro, vive ao lado do jornalista, pesquisador e cronista. São dois e são unos. Separados e juntos, como os trilhos desses trens esquecidos pelos descampados do Rio Grande. 

 


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