Os trilhos da vida (2)

Os trilhos da vida (2)

Ah, amigos e amigas, queridos leitores, a vida é tão curta e tão linda, mas maltrata a gente, machuca por dentro, pelos internos.

Paulo Mendes

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Sempre soube que as histórias são nossas e de todos, porque o que ocorre a um homem ocorre a outros, já asseverava o argentino Jorge Luis Borges. Por isso não me surpreendi com a repercussão da coluna “Os trilhos da vida”, publicada no domingo passado. Foram dezenas de manifestações de leitores dizendo que se emocionaram com as lembranças que brotaram dos tempos de infância nos mais diversos lugares deste Rio Grande. Se não fiquei surpreso, acabei comovido e decidi seguir com a prosa, pois ainda tinha muita coisa a dizer sobre o assunto. Além disso, lembrei-me de meus dois tios ferroviários, Roni e Francisco, de como gostava deles, dos causos que me contavam sobre trens. Ademais, no domingo partiu, em Cacequi, minha prima Sandra Cunha, aos 61 anos, ela que praticamente nasceu e se criou nas estações ferroviárias. 

Sandra era filha do tio Roni e da tia Maria. Quando guri, quase todas as férias eu ia visitá-los onde estivessem. Fui a Cacequi, onde também nasci, a Rosário do Sul, a Santo Ângelo e a Santa Bárbara do Sul, para citar algumas dessas cidades. Eu adorava visitá-los, porque o tio era chefe de estação e morar ali era uma dádiva, o movimento frenético de passageiros, o burburinho, depois a quietude. Brincava nos armazéns, nas oficinas, nos depósitos e nos vagões estacionados. Tio Roni era apaixonado pela vida ferroviária e passava horas me explicando o mecanismo de funcionamento das locomotivas, o sistema de comunicação entre as estações. Era uma vida diferente de tudo que conhecia. Tia Maria e minhas primas Sandra e Mana me acolhiam com carinho, mimos, preparavam guloseimas. Por isso, na hora de voltar para casa, era uma choradeira. 

Dia desses estive na Vila Rica, passei de novo pelos trilhos e uma grande nostalgia tomou conta desse coração já estropiado de tanta poeira e lonjuras. Ouvi os apitos do velho cargueiro transportando gado, grãos e combustíveis, tudo junto, em blocos. Depois o alegre trem de passageiros, que passava pela manhã e retornava no final da tarde, no sentido contrário. Ah, amigos e amigas, queridos leitores, a vida é tão curta e tão linda, mas maltrata a gente, machuca por dentro, pelos internos. O passado grita e esbraveja, a saudade se intromete no causo, diz um verso e vai embora. E ficamos ali, na beira da linha, tomando mate com rapadura. 

Estou aqui, com a mala de madeira, calça curta, uma boina de tricô, esperando o trem para Cacequi. Depois da baldeação, em Santa Maria, vou olhando pela janela do lado esquerdo, as extensas várzeas onde trabalhou e morreu meu avô Antônio Cunha, o marceneiro, exímio fazedor de carretas, rodados, de móveis, camas e até caixões de defunto. Dizem que já velho construiu seu próprio ataúde, o mais simples de todos. Perguntado sobre o porquê de tanta rusticidade, disse que para ele não carecia mais que uma caixa quadrada. Então, o trem vai diminuindo a velocidade, apita e enxergo a estação do Cacequi alegre e enfeitada num sol de fim de semana. Tio Roni me abraça e me puxa pela mão. Antes de entrar, enxergo, sentada num banco de madeira, uma senhora tomando mate cevado numa caneca de porcelana. Agora, solito, aguardo o último trem, numa velha estação abandonada. Será a derradeira viagem. 


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